Avanço do vírus da gripe aviária altamente patogênico em mamíferos preocupa porque pode representar um massacre da vida selvagem
A cena é descrita como apocalíptica por Chris Walzer, diretor executivo de Saúde da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem. Ao longo de 300 km da costa da Patagônia, 95% dos filhotes de elefantes-marinhos do sul (Mirounga leonina) estão mortos. Pelo menos 17 mil espécimes foram exterminadas, no ano passado, pela versão altamente patogênica (IAAP) do H5N1, o vírus da gripe aviária. O micro-organismo avança sobre mamíferos e preocupa especialistas. O temor é de um massacre na vida selvagem, além do risco existente para humanos.
Há poucos dias, a doença foi detectada, pela primeira vez, em elefantes-marinhos e focas na Ilha da Geórgia do Sul, região subantártida. Nenhum outro mamífero desse território britânico ao sul do Oceano Atlântico, a 1 mil quilômetros das Ilhas Malvinas, havia sido infectado. No ano passado, houve um surto entre skuas marrons (Stercorarius antarcticus), aves marinhas endêmicas.
No extremo oposto do globo, mais uma notificação inédita, nos últimos dias do ano passado. Um urso polar, mamífero considerado vulnerável pela lista de espécies ameaçadas da União Internacional de Conservação da Natureza, foi encontrado morto, vítima de gripe aviária, no Alasca.
Em entrevista ao jornal Alaska Beacon, Bob Gerlach, veterinário do estado norte-americano, afirmou que nenhum outro caso do tipo havia sido registrado em qualquer lugar do mundo. Também disse que não será surpresa se novas espécies forem vitimadas pelo micro-organismo altamente patogênico: há dois anos, detectaram-se os primeiros casos de H5N1 na América do Norte, em aves. Provavelmente, o urso se alimentou de algum pássaro infectado.
Probabilidades
Rowland Kao, professor de Epidemiologia Veterinária na Universidade de Edimburgo, na Escócia, explica que, no caso dos elefantes-marinhos subantárticos, é provável ter ocorrido o mesmo. “A transmissão para mamíferos é provavelmente o resultado do consumo de aves mortas infectadas e representa um risco mínimo de propagação adicional — por exemplo, para humanos, diz. “Apesar disso, onde existem aves e mamíferos infectados existe um risco, embora baixo, para os seres humanos”, admite.
O microbiólogo Jansen de Araújo, coordenador de pesquisas do Laboratório de Vírus Emergentes da Universidade de São Paulo (USP), explica que já houve casos de infecção em humanos. “Mas, felizmente, não foi observada uma adaptação eficiente da transmissão humano-humano até o momento deste H5N1.”
Segundo o cientista, que atualmente rastreia o vírus e avalia o potencial de dispersão no Brasil, é preciso observar que os micro-organismos da influenza A são altamente adaptáveis. “Seu código genético relativamente simples não apenas muda aleatoriamente por meio de mutação da mesma forma que organismos vivos, mas por meio de rearranjo”, esclarece Araújo.
Há uma explicação técnica para que o processo se desenvolva, de acordo com o microbiólogo. “Isso ocorre quando vírus intimamente relacionados que infectam a mesma célula hospedeira trocam material genético para produzir genomas.” Esses novos vírus, ressalta Araújo, podem levar a uma maior adaptação para invasão, sobrevivência e replicação dentro daquela espécie hospedeira (leia entrevista nesta página).
Crise
Mesmo que o risco seja mínimo para as pessoas, o avanço do H5N1 altamente patogênico aponta para uma importante crise na biodiversidade, e exige medidas urgentes, defende Diana Bell, professora de Biologia Conservacionista da Universidade de East England, na Inglaterra. “As descobertas da propagação da do H5N1 IAAP para locais subantárticos e o recente relato do vírus num urso polar morto no Ártico destacam a distribuição generalizada entre espécies de mamíferos em ecossistemas frágeis e já ameaçados pela crise do aquecimento global”, diz.
Chris Walzer, diretor executivo de Saúde da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem, não duvida que uma nova pandemia, como a de covid, se torne realidade. “É imperativo que adotemos uma abordagem colaborativa de Saúde Única para identificar estirpes emergentes de gripe aviária em todo o mundo para apoiar o desenvolvimento de vacinas que possam tratar rapidamente a infecção em pessoas para prevenir outra pandemia”, destaca.
No Brasil, os primeiros casos de gripe aviária em mamíferos foram registrados no litoral sul, em outubro. Mais de 500 mil focas e leões marinhos morreram, até então, vítimas do vírus. Embora o micro-organismo circulante hoje não esteja adaptado à infecção em humanos, pois os receptores do trato respiratório são impróprios para a ligação do H5N1, o Instituto Butantan, em São Paulo, desenvolve uma possível vacina contra a doença.
Há uma panzootia, diz cientista
O que se sabe, até agora, sobre o novo vírus da gripe aviária?
Está acontecendo uma panzootia, como uma pandemia em animais de diversas espécies espalhadas no globo. No episódio do urso polar, o animal foi encontrado em uma das comunidades mais ao norte do Alasca, dois anos praticamente depois que esta última cepa (H5N1) foi detectada na América do Norte. É bem provável que estivesse se alimentando de carcaças de aves infectadas ou teve contato com mamíferos infectados. Não se sabe ao certo, mas se o urso polar encontrou um grande número de aves marinhas mortas, focas infectadas ou até mesmo alguma outra fonte de vírus no ambiente, a origem permanece desconhecida. Nós aqui, do Laboratório de Pesquisa de Vírus Emergentes, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, acompanhamos a disseminação desse vírus desde 2001. Acompanhamos o deslocamento dos casos confirmados durante o fim de 2022 até a primeira detecção em maio do ano passado, no estado do Espírito Santo. Em 2 de janeiro de 2023, nós já tínhamos equipes no campo em busca de material para o monitoramento consistente dessas aves.
Mudanças climáticas podem influenciar a transmissibilidade desse vírus?
Acredito que sim, as mudanças climáticas alteram a dinâmica ecológica desses animais. Quando há um impacto ambiental, seja natural ou não, os animais podem se deslocar em busca de novas áreas. Locais antes não habitados passam a ser explorados, e muitas vezes estabelecidos como nova área de busca de alimentos ou até de reprodução. Aqui nas Américas, é fácil perceber analisando o comportamento das aves migratórias, pois elas viajam o mundo em busca de locais para alimentação e reprodução. Ocorre anualmente um fenômeno migratório, onde bilhões de aves visitam o Hemisfério Sul em busca de alimentos e retornam para o Hemisfério Norte na época de reprodução. O degelo nas regiões polares demonstra o que ocorreu com o urso polar. É possível ele estar se alimentado de aves infectadas ou de carcaças de mamíferos infectados, em busca de alimentos. Dessa forma, o estreitamento interespécie favorece o contato direto provocando novas infecções letais.
O vírus pode se adaptar aos mamíferos de forma que a transmissão entre humanos se torne real?
A adaptação desse vírus preocupa, sim, pois poderia desencadear uma nova pandemia, como já foi observado em 2009 com o H1N1 pandêmico. Até o momento, houve seis casos humanos. O primeiro foi no Camboja, de pessoas diretamente em contato com as aves. Assim como no Equador, nos Estados Unidos e no Chile. Há mais dois casos no Camboja sendo investigados pela Organização Mundial da Saúde. Nos preocupa, sim, a quantidade de espécies de mamíferos acometidos, entre ursos, felinos, raposas, golfinhos, gambás, leões marinhos entre outros. Essa adaptação em células de mamíferos pode ocorrer, e acredito que o monitoramento constantemente é essencial para que medidas de controle e prevenção sejam tomadas. Apesar disso, o risco em humanos permanece baixo, uma vez que não foi confirmada qualquer adaptação às células humanas, nem uma transmissão eficiente estabelecida entre humanos.
Ameaça à biodiversidade mundial
Com a assustadora mortalidade de animais em todo o mundo devido à gripe aviária, a Sociedade de Conservação da Vida Selvagem (WCS, sigla em inglês) apela aos governos internacionais para tratarem esta crise crescente com a urgência que exige. À medida que continuamos a monitorizar a morte de inúmeras espécies e a acompanhar o movimento da gripe aviária altamente patogênica (IAAP) nas populações de mamíferos, devemos reforçar o foco na integração da vigilância dos clados emergentes da gripe em aves e mamíferos selvagens para desenvolver bibliotecas de vacinas críticas.
O H5N1 representa agora uma ameaça existencial à biodiversidade mundial. Infectou mais de 150 espécies de aves selvagens e domésticas em todo o mundo, bem como dezenas de espécies de mamíferos. O surto de gripe aviária é o pior ao nível mundial. A infecção é altamente transmissível, espalhada via gotículas e fezes infectadas, e exacerbada pelos calendários de migração das aves, alterados pelas mudanças climáticas.
Globalmente, o H5N1 IAAP já infectou muitos mamíferos — incluindo raposas, pumas, gambás e ursos pretos, na América do Norte. Cerca de 700 focas do Cáspio ameaçadas de extinção morreram de IAAP perto do Daguestão (Rússia) em 2023. Além disso, também foram documentados surtos em explorações de visons na Espanha e na Finlândia que servem como potenciais recipientes de mistura para reordenamento do vírus. O H5N1 altamente patogênico chegou à América Latina com consequências devastadoras.
Mais de 95% dos filhotes de elefantes-marinhos do sul (Mirounga leonina) nascidos ao longo de 300km da costa da Patagônia morreram no fim de 2023. É o primeiro relato de mortalidade massiva da espécie na área por qualquer causa no último meio século. A visão de elefantes-marinhos encontrados mortos ou morrendo ao longo das praias de reprodução só pode ser descrita como apocalíptica.
À medida que o vírus continua a se espalhar pelas populações de mamíferos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apelou às autoridades de saúde pública para se prepararem para uma potencial propagação do H5N1 às pessoas. O valor “R zero” — ou o número de pessoas contaminadas por um único indivíduo infectado — para covid variou, inicialmente, de 1,5 a 7. Para o H5N1 entre aves, é cerca de 100.
O custo da inação já está causando uma grande devastação à vida selvagem. À medida que trabalhamos para ajudar na recuperação das populações afetadas, devemos permanecer vigilantes contra a propagação desse agente patogênico mortal às pessoas, antes que seja tarde demais.
Chris Walzer, diretor executivo de Saúde da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem