Pilotis dos blocos das superquadras, a utopia que não fracassou

Brasília (DF), 07/03/19. Feminicídio na Asa Norte - ar bucólico e monótono da superquadra 316 norte, onde Diva Maria Maia foi assassinada no final de janeiro pelo marido. Vida na superquadra, tranquila, onde nada parece sair do normal. Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Os vãos livres são a prova cotidiana (e brasiliense) de que é possível vida coletiva de qualidade sem a prisão dos condomínios fechados

 

Quando os brasileiros deram asas à arquitetura moderna pendurando os edifícios em pilotis, abrindo caminho para o vento e as pessoas, liberando o chão para a passagem do desejo, dos encontros, das possibilidades, eles ofereceram ao mundo o jeito mestiço e tropical de ser moderno.

Foi assim no Masp, da Linda Bo Bardi, e no Palácio Gustavo Capanema, de Lucio Costa e equipe, os dois exemplos mais potentes de que, com ousadia e liberdade, até o concreto armado pode voar. Na Flip que terminou no domingo (14/07), uma das mesas mais festejadas tratou das relações entre literatura, música, urbanismo e arquitetura. Os arquitetos Guilherme Wisnik e Nuno Grande e a cantora Adriana Calcanhoto invocaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Juscelino e Brasília.

O ponto de partida da mesa foi a exposição “Infinito vão: 90 anos de arquitetura brasileira”, aberta em Portugal desde o ano passado. O vão livre é o traço mais marcante do modo brasileiro de fazer arquitetura moderna. Como na música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão/Estende-se infinito/Imenso monolito/Nossa arquitetura”.

Como o amor, os vãos do Plano Piloto estendem-se infinitos nas superquadras. Nenhuma outra cidade brasileira é tão livre para amar em vão como Brasília, como os blocos das Asas Norte e Sul. A despeito do desejo incontido de se querer fechar os vãos livres dos pilotis, eles seguem libertos – como o verdadeiro amor.

Dia desses, uma jovem estudante de design, vinda de São Paulo, olhou pela primeira vez para os blocos das superquadras e estranhou: Ué, eles não têm grades!

A utopia não foi totalmente vã: os pilotis continuam livres e são a prova cotidiana de que é possível a vida coletiva fora dos condomínios fechados.

“Ao contrário da arquitetura portuguesa, que se define como uma arquitetura chã, um arquitetura atávica, presa ao chão, a arquitetura brasileira — disse Guilherme Wisnik — ganhou essa coisa utópica, esse desejo de salto, de sobrevoo”.

Se voa, nós brasilienses voamos juntos nos blocos de três e seis andares das superquadras. E nem é por isso que cada um dos lados das fileiras de blocos residenciais do Plano Piloto se chama asa. A escolha, diz a história, foi apenas um modo apressado de dar nome à sequência de superquadras à direita e à esquerda do Eixo Monumental.

O verdadeiro amor é vão, os edifícios têm vãos, tudo o mais nesta cidade é um vão infinito entre o céu e a terra. Os arquitetos da natureza e da cidade, os deuses e os homens, prepararam o terreno para a utopia. Uma delas fracassou, mas a outra ninguém nos tira: os vãos. De onde se pode voar sem sair do lugar.

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