Prolongamento da crise revela o drama de pessoas que, mesmo com formação técnica ou diplomas de graduação e pós-graduação, não encontram oportunidades no mercado formal de trabalho. Criatividade é arma para conseguir sobreviver
Técnico qualificado em mecânica e eletrônica, que fala inglês e mandarim, é morador de rua há dois anos. Advogada especializada em direito do servidor, com pós-graduação, usa a criatividade para mudar de ramo. Nutricionista recém-formada está disposta a aceitar qualquer emprego e advogada se arrisca nas vendas virtuais de roupas plus size para sobreviver. Todos esses casos têm em comum o mesmo elemento: apesar da formação de alto nível, são pessoas que não escaparam do redemoinho em que a desocupação, o subemprego, o desalento e a ausência de esperança no futuro arrastam milhões de brasileiros ao desespero. Os dramas, aparentemente individuais, têm a mesma causa: a crise econômica e a falta de confiança no futuro.
Cursos
Jesus nasceu na Zona Norte do Rio de Janeiro, filho de um pedreiro (já falecido) e uma empregada doméstica. Foi criado pela madrinha. Em 2006, iniciou o curso de engenharia mecânica na Unisuam. “Não continuei por causa dos filhos”, conta. Ele se casou em 2008 e tem quatro filhos. Quando ainda era casado, foi para Salvador trabalhar na produção de festas e eventos. De volta ao Rio, fez cursos técnicos em mecânica e eletrônica. Passou no vestibular para matemática na UFRJ, em 2011, mas foi chamado pela Petrobras para trabalhar no projeto de implantação do Módulo SAP MM (controle de estoque), com salário de R$ 2,5 mil.
Separado da esposa em 2016, resolveu tentar a sorte em Brasília. No início deste mês, surgiu a primeira oportunidade. “Fui tentar uma vaga na Fercal (onde há grandes empresas produtoras de cimento, usinas de asfalto e derivados). Mas era para trabalhar em condições insalubres”, diz. Jesus não passou no exame médico, pois tem anemia falciforme e não pode lidar com produtos químicos.
Uma advogada e servidora pública, que não quis se identificar, foi quem descobriu as habilidades técnicas de Jesus e incentivou os amigos a ajudá-lo. Ela observou os livros que o técnico lia, um deles no idioma chinês. “Conversei com ele sobre o mandarim. Quando vi que os símbolos (desenhos) dele são muito melhores que os meus, fiquei tocada. Ele tem até carteira do Crea”, conta.
O caso de Marcos Paulo de Jesus é extremo. Porém, há outros, como o da advogada Fernanda Zoo, 33, que se tornou microempreendedora individual (MEI) para fugir do desemprego, em 2017, depois de atuar na assessoria de Pessoal e Gestão, Política Pública e Gênero e Raça na Casa Civil do Governo do Distrito Federal (GDF), com salário de R$ 4,5 mil. No cargo, participou de negociações estratégicas com servidores e em assuntos da área social.
“Cheguei a entregar panfleto e vender brigadeiro, até criar o MEI”, reforça Fernanda, que é mãe de Júlia, de 6 anos. Agora, ela organiza palestras e seminários na área acadêmica. “Tive que mudar de rumo. Atualmente, a área de gênero no Brasil, onde sempre trabalhei, é quase um palavrão. Aos trancos e barrancos, minha renda está em torno de R$ 6 mil”, diz.
Saturação
Nayara Santana, 35, advogada, formou-se em 2010. Como estagiária, já trabalhava na área jurídica em um escritório de advocacia, lidando com defesa de servidores públicos. Ficou lá até 2014, com carteira assinada e honorários de participação, e chegou ao cargo de gerente. “Mas, o ambiente ficou péssimo e decidi tentar outras coisas. Primeiro, concurso público. Depois, fui para um outro escritório que, entretanto, quase fechou as portas em 2016”, diz Nayara.
A advogada está fora do mercado, com uma pós-graduação em direito civil concluída e outra em andamento, em direito digital. Fala inglês e espanhol e fez curso de empreendedorismo. “Abri uma loja virtual de roupas plus size, já encerrada. Agora, tenho uma empresa de consultoria na área de marketing. Eu me pergunto o que vou fazer com esse conhecimento todo. Vejo colegas fazendo audiências por R$ 100 e diligências por R$ 300”, questiona. Ela diz que cogitou mudar de profissão. “Cheguei a me inscrever no Enem para arquitetura.”
De acordo com Nayara, o mercado de direito no Brasil está saturado. “No edifício onde trabalhava, 70% das salas eram escritórios de advocacia. Agora, parece um prédio fantasma. Houve uma mudança de mentalidade. A meritocracia deixou de ser importante. Especialização, em qualquer profissão, acaba funcionando para quem indica. Vi muitas pessoas com menor qualificação ganhando mais que outras.”