A representante do Ministério Publico disse que o ciclo de agressões começa no ambiente doméstico, em silêncio, com a prática de atos de intimidação, agressões psicológicas e constrangimentos, e ressaltou a importância da denúncia
A escalada da violência contra as mulheres foi tema do Podcast do Jornal Correio Braziliense desta última quinta-feira (3/4). Em conversa com as jornalistas Mariana Niederauer e Sibele Negromonte, Adalgiza Aguiar, promotora de Justiça do Ministério Público do DF e Territórios e coordenadora do Núcleo de Gênero do MPDFT, comentou sobre o crescimento do número de casos de violência de gênero, a importância da denúncia e medidas adotadas pela justiça brasileira para combater esse crime.
Esses casos de feminicídio, geralmente, ocorrem no âmbito familiar, como é esse trabalho educacional para que a mulher tenha coragem de denunciar e saiba que há mecanismos de proteção do Estado?
A casa é o espaço mais inseguro para a mulher. As pesquisas indicam isso, a maioria desses feminicídios ocorre dentro da residência. A gente diz que a violência normalmente não começa com um tapa, ela começa com silêncio. A violência começa quando o companheiro pratica atos de intimidação, agressões psicológicas e constrangimentos. A mulher se cala, muitas vezes para aceitar, naquela concepção de manutenção da família, e essa violência vai se agravando. Aí começam os tapas, violências psicológicas mais graves, até, infelizmente, muitas vezes, escalar para um feminicídio. Por isso que a gente diz que é uma morte evitável, porque ela vem sendo anunciada desde as primeiras intimidações até essas agressões mais fatais. Nós precisamos pensar sempre na conscientização das mulheres em relação a esse ciclo de violência e o quanto ele pode se agravar até chegar a uma situação de feminicídio. É preciso não achar que aquele tratamento, que muitas vezes está se tornando mais violento, é normal, é natural.
Existem dados que mostrem que denunciar realmente evita o feminicídio?
Os dados da Secretaria de Segurança Pública contabilizam que, dos feminicídios que ocorreram, desde a previsão do feminicídio no Código Penal de 2015, até 2025, 68,9% das mulheres que morreram nunca tinham registrado uma ocorrência. Então, a maioria não chegou nem ao conhecimento do sistema de Justiça e das forças de segurança. É a minoria que alguma vez já tinha denunciado. Mas se existe uma minoria que buscou o sistema de Justiça e que ainda assim aconteceu o feminicídio, nós precisamos reconhecer que tem, sim, falhas no sistema de justiça, nas forças de segurança, que nós precisamos corrigir. Eu sempre costumo falar que as medidas protetivas salvam vidas e as mulheres precisam procurar essa ajuda, principalmente porque o sistema de Justiça e as forças de segurança têm tentado aperfeiçoar as formas de proteção.
Educar os homens que tenham cometido agressões surte efeito?
No âmbito do Distrito Federal, nós temos o Espaço Acolher, que é um equipamento ligado à Secretaria da Mulher que traz essa questão dos grupos reflexivos. Não é um tratamento psicológico, mas serve para trabalhar com os homens essa questão da masculinidade e mostrá-los, numa perspectiva educacional, que controle, ciúmes, manipulação e isolamento não são manifestações de amor, mas manifestações de violência. As pesquisas indicam que os homens que frequentam esses grupos reflexivos não voltam a cometer violências domésticas. É muito interessante porque aqui há uma reflexão. Quando os homens refletem, a gente chama de intervenção terciária. Alguns homens cometem crimes como lesão corporal, ameaças, injúrias, e no âmbito do processo o promotor de justiça pede aos juízes que encaminhem para um grupo reflexivo como o Espaço Acolher, e eles passam a não mais ser reincidentes. Assim, aquela situação que era uma lesão corporal não vai progredir para uma tentativa ou até mesmo um feminicídio.
O número de casos aumentou mesmo ou as pessoas só estão mais atentas a eles?
A única certeza que nós temos é que aumentaram os registros, mas a gente sabe que a subnotificação é, e sempre foi, muito alta. A gente sabe que antes era ainda mais difícil. A gente sabe que aumentou os registros e, com isso, a gente pode contar que está acontecendo uma maior conscientização da nossa sociedade de que as mulheres precisam denunciar. Todos nós operadores do direito e também a mídia e as comunidades têm alertado para a necessidade de denunciar. Mas a gente acredita também que as comunidades de ódio, tanto no âmbito virtual, como na sociedade, nos espaços políticos e sociais, a gente infelizmente ainda vê um crescimento de ódio a pessoas vulneráveis e dentre elas as mulheres, o que chamamos de misoginia. Isso tem nos preocupado, e a gente precisa estudar mais se essa misoginia que está acontecendo de forma crescente, tem também contribuído para aumentar os índices de violência contra a mulher.
Qual tem sido o impacto do pacote anti-feminicídio, que endureceu as penas no ano passado?
Mas o pacote de feminicídio tem pontos positivos. Por exemplo, aumentou a pena do crime de feminicídio e tornou esse crime autônomo. Quando acontece um feminicídio, a pior situação já aconteceu. Então, é preciso uma reprimenda mais severa, até para fins pedagógicos, para mostrar à sociedade que realmente houve ali a morte de uma mulher, que em sua maioria deixa filhos. Ter aumentado a pena e ter tornado esse crime autônomo traz alguns pontos importantes. Por exemplo, não vai se pensar mais no feminicídio como uma situação privilegiada pela violenta emoção. Agora o feminicídio é um crime autônomo, e não mais como uma qualificadora do homicídio. A gente consegue construir números, quantos casos de homicídio, quantos casos de feminicídio, quais são os dados, e os dados são importantes para a gente pensar em políticas públicas. Então, tem pontos importantes sim, mas o pacote de feminicídio trouxe aumentos de penas em vários crimes.