
A beleza e o engano da elasticidade.Ser “muito flexível” parece uma virtude.Quem toca o chão com as mãos ou dobra o corpo com facilidade desperta admiração. Mas, em alguns casos, o corpo que se dobra demais vive uma batalha silenciosa para se manter inteiro. A hipermobilidade articular — essa capacidade de mover as articulações além do limite comum — pode ser tanto uma curiosidade anatômica quanto uma síndrome complexa, que envolve dor, fadiga e instabilidade.O curioso é que, por muito tempo, essas pessoas foram rotuladas com outro nome: fibromialgia. E, de fato, há sobreposição — as duas condições compartilham sintomas como dor difusa, sono leve e fadiga persistente.Mas não são sinônimos, nem excludentes. Muitos pacientes com hipermobilidade também têm fibromialgia, e isso torna o diagnóstico ainda mais desafiador.“Enquanto a fibromialgia representa um distúrbio da percepção da dor, a hipermobilidade é um distúrbio da estrutura que sustenta o corpo”, explica o fisiatra Dr. Gropen. “Uma mexe na forma como o corpo sente; a outra, na forma como o corpo se mantém. Quando as duas se encontram, a dor se multiplica em complexidade.”-Quando o colágeno é elástico demaisO tecido conjuntivo — formado principalmente por colágeno — é o que dá firmeza às estruturas corporais.Na síndrome da hipermobilidade e em sua forma mais abrangente, a síndrome de Ehlers-Danlos hipermóvel (SEDh), esse tecido é excessivamente elástico.O corpo se torna maleável, mas instável.O que deveria proteger começa a ceder, e o resultado é uma sequência de pequenas falhas biomecânicas que o sistema nervoso interpreta como dor.“O grande equívoco é achar que ser elástico é o mesmo que ser saudável”, diz Dr. Gropen. “Essas pessoas não são feitas de borracha, mas de colágeno frouxo — e o preço é alto.”– Os sinais invisíveis: quando o corpo fala em códigosOs sintomas vão muito além das articulações. A hipermobilidade é, na verdade, um distúrbio sistêmico, e seu impacto se espalha por todo o organismo. É comum encontrar pacientes com:• Tonturas e desmaios, especialmente ao levantar-se;• Pressão baixa e palpitações;• Fadiga desproporcional, sensação de “pilha descarregada”;• Dores de cabeça e enxaquecas frequentes;• Distúrbios gastrointestinais, como intestino irritável, refluxo e náuseas;• Ansiedade e crises de pânico, frequentemente relacionadas a disfunções do sistema nervoso autônomo;• E, em muitos casos, uma forma de disautonomia conhecida como POTS (síndrome da taquicardia postural ortostática), em que o coração acelera ao se levantar, como se o corpo esquecesse de equilibrar a própria pressão.“O corpo fala em códigos — e o médico precisa aprender a traduzi-los”, diz o especialista. “O que parece ansiedade pode ser falta de pressão; o que parece preguiça pode ser fadiga neuromuscular. É uma orquestra em descompasso.”– Diagnóstico e reabilitação: o corpo como harmoniaO diagnóstico é clínico e exige uma escuta cuidadosa. Não há exame único, mas há padrões que se repetem: dor multifocal, instabilidade, fadiga e múltiplos sintomas “sem explicação”.O desafio é costurar essas pistas — e ver o todo. A reabilitação é o eixo central do tratamento. Combinam-se cinesioterapia personalizada, métodos físicos, fortalecimento muscular inteligente, ajuste postural e educação do movimento. O foco não é conter o corpo, e sim devolvê-lo à harmonia.“A arte da reabilitação está em ensinar o corpo a se sustentar com elegância”, resume Dr. Gropen. “É a beleza da força que apoia sem travar — firme o bastante para proteger, suave o bastante para permitir o movimento.”Além da cinesioterapia, o manejo pode incluir melhora do sono, hidratação adequada, ajuste de rotina, apoio psicológico e algumas vezes a utilização de medicações. Quando o paciente entende o próprio corpo, passa a ser o protagonista da sua melhora.– Entre o mito e a dor invisívelEntre o mito da superflexibilidade e a realidade da dor crônica, a hipermobilidade segue sendo uma fronteira pouco explorada entre a forma e a função. De fora, tudo parece normal — por dentro, o corpo tenta manter o equilíbrio que o colágeno não oferece.“Esses pacientes não precisam de pena, precisam de estratégia e reconhecimento”, diz Dr. Gropen.“Flexibilidade é virtude — mas só quando vem acompanhada de estabilidade. O corpo humano não foi feito para dobrar infinitamente, e sim para resistir com graça.”E talvez essa seja a verdadeira lição da hipermobilidade: a de que até a leveza precisa de sustentação, e que a beleza do movimento está em saber até onde ir — antes que o corpo peça, com elegância, para parar.Por Dr. GropenMédico fisiatra e especialista em dorIBDOR – Brasília




