O SUS registrou uma média de 1,2 mil atendimentos ambulatoriais relacionados a transtornos do jogo nos últimos dois anos. Especialistas destacam que a compulsão por apostas on-line pode ser tratada como um problema de saúde pública
Um dos mercados mais polêmicos do país, as apostas esportivas e os cassinos on-line movimentam mais de R$ 20 bilhões por mês no Brasil. Em 2024, cerca de 22 milhões de brasileiros fizeram pelo menos uma aposta nessas plataformas. Especialistas ressaltam que essa compulsão pode ser tratada como um problema de saúde pública. Nos últimos dois anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou uma média de 1,2 mil atendimentos ambulatoriais relacionados a transtornos do jogo — 1.290 em 2023 e 1.263 em 2024. De janeiro a abril deste ano, foram 271 atendimentos, segundo o Ministério da Saúde (MS). (Leia Sinais do Vício no fim da matéria)
Para Carlos*, 28, morador de Vicente Pires, o que começou como entretenimento e diversão terminou com descontrole e dívidas. “Conheci o mundo das apostas esportivas por meio de alguns amigos, no fim de 2019. No começo era divertido, e eu achava que podia ser uma fonte de renda extra”, lembrou. Carlos percebeu que a diversão havia se transformado em vício quando contraiu dívidas e viu que o jogo estava afetando o relacionamento com a esposa (agora ex), familiares e amigos.
Ele calcula que perdeu cerca de R$ 140 mil em apostas. “Isso por baixo. Pode ter sido bem mais”, relatou. “Cheguei a pedir o salário da minha ex-esposa para apostar, com a promessa de que devolveria, mas perdi tudo”, lamentou. Antes da separação, o morador de Vicente Pires foi incentivado pela ex e por familiares a procurar ajuda médica. “Fiz acompanhamento, tomei medicação para controlar a ansiedade, mas, após um tempo, voltei a apostar”, confessou.
Desequilíbrio
Leandro Freitas Oliveira, neurocientista e professor de psicologia na Universidade Católica de Brasília (UCB), acredita que o vício em apostas é um problema de saúde pública. “Sobretudo pela capacidade de se disseminar entre jovens e adultos vulneráveis, impulsionado por algoritmos, plataformas digitais e propagandas que romantizam o jogo como estilo de vida”, explicou.
Para ele, o vício não atinge apenas o indivíduo. Desestrutura famílias, compromete o desempenho escolar e profissional e sobrecarrega os sistemas de saúde e assistência social. “Estamos diante de um problema que apresenta uma alta prevalência, baixa taxa de percepção de risco e uma escassa oferta de tratamento especializado”, completou.
De acordo com o especialista, o vício em apostas afeta a saúde como qualquer outra dependência: de forma sistêmica, silenciosa e progressiva. “O cérebro de uma pessoa com comportamento adicto apresenta um desequilíbrio funcional entre áreas responsáveis pelo impulso e aquelas responsáveis pelo autocontrole”, comentou. “Como resultado, há uma redução da capacidade de resistir à tentação, mesmo diante de prejuízos claros. As apostas deixam de ser uma fonte de prazer e passam a ser uma necessidade angustiante”, acrescentou.
Durante cerca de dois anos, Adriano*, 20, se rendeu ao vício nas apostas. O morador de Luziânia, no Entorno do Distrito Federal, disse que o problema começou quando estava no ensino médio. “No início, apostava principalmente em jogos de futebol, mas quantias pequenas, com dinheiro que ganhava de parentes. Naquela época, meus pais não sabiam, pois eu apostava escondido”, relatou.
O vício ficou evidente quando ele passou a apostar em campeonatos alternativos que, às vezes, nem assistia. “Colocava dinheiro em campeonatos de futebol da segunda divisão na Etiópia, ou jogos de cricket na Índia”, lembrou. “Os valores giravam em torno de R$ 50 a R$ 200 e, no total, perdi entre R$ 2 mil e R$ 3 mil”, calculou Adriano. Segundo o morador de Luziânia, o valor mais alto que chegou a apostar foi R$ 700. “Coloquei em um jogo de tênis. Era o valor que eu tinha ‘lucrado’ na semana, mas acabei perdendo tudo nessa aposta”, afirmou.
Suporte
Do ponto de vista cerebral, o que separa o lazer da doença é o grau de controle que o indivíduo tem sobre seu comportamento, explica Leandro Freitas. “Quando alguém aposta de forma eventual, por diversão e, principalmente, com consciência dos riscos, é um comportamento recreativo”, assinalou. “Quando o ato de apostar passa a ser motivado por uma necessidade interna urgente, associada à ansiedade, impulsividade, agressividade e perda da noção de limites, é preciso ligar o sinal de alerta”, ponderou o especialista.
Ele apontou que os sinais de que o comportamento está caminhando do entretenimento para o vício aparecem, geralmente, de forma sutil e indicam que o cérebro pode estar preso a um ciclo de dependência, momento em que é preciso buscar ajuda (leia Atenção aos sinais do vício).
O neurocientista ressaltou que é possível sair do vício. “O cérebro é ‘plástico’, ou seja, tem a capacidade de reorganizar seus circuitos, mesmo após períodos prolongados de comportamento compulsivo”, esclareceu. “Esse tipo de reabilitação exige intervenções específicas e suporte estruturado. O tratamento mais eficaz combina atendimento psicoterápico, apoio familiar e, em casos mais graves, medicação para sintomas associados, como depressão, ansiedade e impulsividade”, acrescentou.
Para mudar de vez a situação, Carlos disse que o primeiro passo foi aceitar que estava viciado. “Tive apoio de pessoas importantes, que me ajudaram naquele momento. Coloquei até uma pessoa para cuidar das minhas finanças, por um tempo, além de excluir todas as contas das plataformas em que eu apostava, e restringir o horário para fazer pix da minha conta”, detalhou. “No início, é bem complicado, mas após alguns meses, você acaba esquecendo. Hoje em dia, posso falar que voltei à normalidade, mas sempre um passo de cada vez, para não cair na tentação novamente”, destacou. De acordo com Carlos, todas as dívidas feitas por causa das apostas foram quitadas há cerca de seis meses.
Adriano disse que não precisou de ajuda para sair do vício. “Com o tempo, percebi que é um mundo nem um pouco rentável. Consegui me controlar a ponto de não entrar em cassinos on-line, como o jogo do tigrinho”, afirmou. Atualmente, ele não aposta mais com a mesma frequência. “Só quando tem algum evento anual, de algum esporte que eu acompanho, mas são valores bem menores do que antes. Não sinto mais o mesmo vício, até porque as responsabilidades são maiores agora”, avaliou.
Segundo o Ministério da Saúde, o SUS oferece cuidados em saúde mental para pessoas com transtorno do jogo. Os atendimentos especializados são ofertados na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com base na Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Tanto a Atenção Primária à Saúde (UBS, e-Multi) como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em todas as suas modalidades (CAPS I, II e III, CAPSad, CAPSi), podem acolher pessoas com necessidades decorrentes do jogo. No DF, de acordo com a Secretaria de Saúde, são 18 CAPS, e o acesso é por demanda espontânea, sem necessidade de encaminhamento para ser acolhido no serviço.
Sinais de vício
- Mentir sobre o tempo ou o dinheiro gastos, negligenciando compromissos importantes e, mesmo diante de prejuízos financeiros e emocionais, continuar apostando;
- Ter o hábito de apostar está tirando sua capacidade de decisão;
- Apostar para aliviar emoções negativas, como ansiedade ou frustração;
- Sentir irritação ao ficar sem apostar;
- Tentar parar e não conseguir.