Por que usar muito a cabeça não é pensar com inteligência, segundo autora

Murphy Paul diz que usar demais o cérebro não nos torna mais inteligentes

 

 

A sociedade atual gira em torno do cérebro e de seu poder.

Trata-se de “uma maravilha insondável, a estrutura mais complexa do universo”, escreve a jornalista científica Annie Murphy Paul em seu recente livro Extended Mind: The Power of Thinking Outside the Brain (“Mente estendida: o poder de pensar fora do cérebro”, em tradução livre).

“O cérebro é realmente incrível”, disse ela à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC), “mas também é muito limitado.”

Por esse motivo, Murphy Paul diz que usar demais o cérebro não nos torna mais inteligentes, muito pelo contrário.

Em seu livro, a autora americana analisa pesquisas neurocientíficas que mostram como podemos “pensar fora da cabeça” e dá exemplos práticos para usarmos nosso corpo, meio ambiente e relacionamentos como extensões mentais que nos ajudam a melhorar a concentração, a compreensão e a criatividade.


BBC – Por que “usar a cabeça” nem sempre é a coisa mais inteligente a se fazer?

Annie Murphy Paul – A frase “use sua cabeça” encapsula uma atitude em relação ao pensamento com a qual a maioria de nós cresceu e incorporou, mas acho que é problemática. Ela assume que o pensamento acontece aqui (toca a testa) e que, para resolver um problema, aprender algo novo ou gerar uma nova ideia, é preciso trabalhar mais a cabeça.

Nesse sentido, existe uma metáfora muito difundida do cérebro como um músculo, que indica que quanto mais você o exercita, melhor funciona. Mas o cérebro sozinho é bastante limitado e instável. Não é uma máquina pensante todo-poderosa e multifuncional.

Annie Murphy Paul

Annie Murphy Paul
O mais recente livro da jornalista científica Annie Murphy Paul foi publicado em junho

Na verdade, esse órgão evoluiu para fazer certas coisas e não são as coisas que pedimos para ele fazer em nossas vidas modernas, como pensar em conceitos abstratos ou teorias contraintuitivas e absorver todas essas informações o tempo todo.

Portanto, dizer “use sua cabeça” é, na verdade, se trancar em uma caixa e se isolar de uma série de estratégias extraneuronais.

BBC – Como você encontrou essas áreas de pesquisa neurocientífica que vão além do paradigma cerebrocêntrico que prevalece hoje?

Murphy Paul – Embora haja essa abordagem predominante de pensamento que se concentra no cérebro, sempre houve linhas de pesquisa que não confirmam essa ideia. São áreas sólidas e substanciais que existem há décadas, mas estão fora do mainstream.

Essas são áreas de pesquisa como a cognição incorporada — que pensamos com nossos corpos; cognição situada — em que onde estamos afeta o modo como pensamos; e a cognição socialmente distribuída — a ideia de que o pensamento ocorre em grupos de pessoas.

Como pesquiso e escrevo sobre aprendizagem e cognição, fiquei muito intrigada com essas áreas. Parecia-me que eram relacionadas, mas eu não tinha certeza de como colocá-las juntas.

Mulher com caixa na cabeça

Getty Images
“Dizer ‘use sua cabeça’ é realmente se trancar em uma caixa e se isolar de uma série de estratégias extraneuronais”, diz Murphy Paul

Então um dia me deparei com um artigo dos filósofos Andy Clark e David Chalmers sobre a mente estendida, onde eles propõem a ideia de que o pensamento não ocorre apenas em nossas mentes, mas se espalha por nossos corpos, espaços, relacionamentos, dispositivos e ferramentas que usamos.

Isso me deu a ótima ideia de reunir esses corpos de pesquisa, sugerindo que focar apenas no cérebro é uma perspectiva muito limitadora.

BBC – Você poderia dar exemplos de estudos e descobertas relacionadas a cognição incorporada, cognição situada e cognição socialmente distribuída?

Murphy Paul – Quanto à cognição incorporada, uma área de pesquisa muito interessante é a dos gestos e como usamos as mãos quando falamos e pensamos. A noção centrada no cérebro sugere que todo pensamento ocorre aqui (a testa é tocada novamente) e que suas mãos simplesmente se movem como uma espécie de entretenimento secundário.

Mas, na verdade, pesquisas sobre cognição e gestos incorporados mostram que os movimentos de nossas mãos são de fato parte do processo. Eles se retroalimentam: os movimentos de nossas mãos informam o que pensamos e o que pensamos é expresso em nossas mãos.

Portanto, quando as pessoas não têm permissão para mover as mãos, elas falam com menos fluência, pensam com menos clareza e são menos capazes de resolver problemas.

Mulher falando em ambiente profissional

Getty Images
Os movimentos das mãos ao falar são parte do processo de pensamento e não um mero espetáculo secundário, diz autora

Quando se trata de cognição situada, há muitas pesquisas sobre como estar ao ar livre na natureza afeta nosso pensamento.

A teoria principal é chamada de teoria da restauração da atenção. É a ideia de que, à medida que os seres humanos evoluem na natureza, nossos cérebros processam os estímulos que aí encontramos de maneira fácil e isso é muito revigorante e revitalizante.

Na natureza, por exemplo, não existem limites pontiagudos ou muitos movimentos rápidos, e os sons geralmente são suaves. É muito diferente de um ambiente urbano ou dentro de um edifício.

Portanto, passar um tempo na natureza é como reabastecer seu tanque de atenção e as habilidades que permitem que você se concentre.

Pensamos muito em como administramos ou gastamos nossa atenção e esquecemos que temos que recarregar e renovar regularmente essa capacidade.

Uma reunião em um escritório com post its

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Anotar ideias em post-its e movê-las para ordenar as ideias é uma estratégia prática para reduzir a tensão mental ou a carga cognitiva

Finalmente, existe a cognição socialmente distribuída. Existe um mito de que gênios e pessoas muito inteligentes conseguem tudo por si próprios e isso não é o caso, principalmente no mundo de hoje.

Hoje a informação é tão abundante, existe um nível de especialização tão grande e nossos problemas ou desafios são tão complexos que temos que criar algo como uma mente coletiva onde as pessoas se reúnem, colaboram e pensam juntas.

Um dos meus exemplos favoritos é o da memória transativa. Ninguém pode saber tudo, mas quando você tem um grupo de pessoas, cada uma tem uma especialidade e você sabe o que é, então você pode multiplicar quanta informação e quanta memória você tem no coletivo.

É uma forma social de expandir nossa capacidade mental, indo além de nosso próprio cérebro.

BBC – Em seu livro, você dá conselhos práticos sobre como implementar muitas dessas descobertas. Há algum conselho em especial do qual você goste mais ou que mais a tenha servido?

Murphy Paul – Uma coisa que aprendi ao escrever o livro e que agora coloco em prática é a chamada descarga cognitiva, que é a ideia de que fazemos coisas demais dentro da nossa cabeça.

Tentamos manter todas as informações, todas as nossas ideias e todas as conexões que estamos fazendo entre essas ideias permanecerem em nossas cabeças. Isso, na realidade, é uma estratégia ineficiente e ineficaz.

Mãos estendidas na frente de uma paisagem montanhosa

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Nossos cérebros processam os estímulos da natureza facilmente e isso é muito revitalizante

O que devemos fazer é descarregar o conteúdo da nossa cabeça no espaço físico. Pode ser no computador, um quadro-negro ou, meu favorito, em muitos Post-its.

É que nossos cérebros evoluíram para fazer certas coisas muito facilmente e bem. Por exemplo, eles evoluíram para manipular objetos físicos e navegar por paisagens tridimensionais.

Mas eles não fizeram isso para lidar com conceitos abstratos e teorias contraintuitivas, como eu estava dizendo antes.

Portanto, quanto mais você transformar ideias e informações em objetos ou paisagens, melhor. Guardá-las na cabeça não é o mesmo que escrevê-las em folhas e poder colocar em ação recursos extraneuronais.

BBC – Você também dá exemplos de artistas, cientistas e autores famosos que pensam com o corpo, os espaços e as relações. Você gostou ou se surpreendeu particularmente com algum deles?

Murphy Paul – Uma história na qual penso muito é a de James Watson, o co-descobridor da estrutura do DNA.

Às vezes, nos parece que os cientistas são esses gênios que de repente se iluminam. Mas o que Watson fez para decifrar algo tão complexo como a estrutura de dupla hélice do DNA foi cortar pedaços de papelão e encaixá-los.

É quase como uma estratégia de jardim de infância. E é assim que permitimos que as crianças brinquem e aprendam manipulando blocos e outros objetos.

Um menino brincando com blocos

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Aprender manipulando objetos não deve se restringir a crianças pequenas, pois é uma forma eficaz de ajudar o cérebro a pensar melhor

No entanto, temos a ideia de que, à medida que crescemos e nos tornamos adultos, devemos colocar essas coisas de lado e pensar apenas com a cabeça. A história de Watson é uma grande demonstração de como isso não é verdade.

É até possível que ele não pudesse ter decifrado a estrutura do DNA sem manipular objetos concretos para ajudá-lo a pensar.

BBC  Por que você acha que é importante explicar as limitações do cérebro?

Murphy Paul – Eu acho que é muito importante porque em livros, programas de televisão e todos os tipos de apresentações científicas, nos dizem que o cérebro é incrível, que é o objeto mais complexo do universo.

E o cérebro é realmente incrível, mas também é muito limitado. E esses limites são universais e inerentes ao organismo. Eles não têm nada a ver com diferenças individuais ou com quão inteligentes somos.

Assim, as pessoas ouvem o tempo todo sobre como o cérebro pode ser maravilhoso, mas seu próprio cérebro as decepciona. Por exemplo, elas esquecem coisas, não conseguem se concentrar ou não conseguem permanecer motivadas. Nesse sentido, é muito útil lembrar que esses são limites que se integram ao cérebro como órgão biológico evoluído.

Homem comprando

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Às vezes, o esquecimento é simplesmente uma consequência da capacidade limitada de nosso cérebro de lembrar

Por exemplo, o cérebro é feito para se distrair porque, na situação em que evoluímos, as distrações podem significar uma oportunidade ou uma ameaça. Foi muito importante estarmos distraídos no sentido de prestar atenção a qualquer coisa nova ou surpreendente que estivesse presente em nosso ambiente.

Portanto, não devemos ser muito duros com nós mesmos quando tentamos trabalhar, mas ficamos distraídos o tempo todo.

Uma forma de aplicar a descarga cognitiva aqui seria nos proteger de distrações com paredes, com um espaço privado para trabalhar.

O cérebro também não foi projetado para lembrar as coisas exatamente como aconteceram. Esse é outro motivo pelo qual, sempre que possível, devemos descarregar o que precisamos lembrar em um calendário ou caderno.

Assim, liberamos espaço mental para fazer o que o cérebro humano realmente faz bem; por exemplo, imaginar e planejar, que são habilidades cognitivas superiores.

BBC – Em seu livro, você afirma que o paradigma “centrocerebrista” não pode resolver os “desafios sem precedentes de nossa sociedade”. Por quê?

Murphy Paul – É possível argumentar que realmente atingimos os limites do cérebro biológico, que o estamos fazendo funcionar a 100% de sua capacidade.

O ser humano nunca viveu em um ambiente com tantas informações e convivendo com problemas de vida e morte incrivelmente complexos. Um exemplo são as mudanças climáticas.

Portanto, para enfrentar o momento e resolver os problemas que temos pela frente, a única opção é aprender a ir além do cérebro e encontrar esses recursos que podem aumentar sua potência, porque o cérebro biológico simplesmente não está à altura desta tarefa.

Mãos

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Existem métodos cientificamente comprovados para aumentar a inteligência coletiva dos membros de uma equipe de trabalho

É importante ressaltar que já estamos aplicando muitas dessas estratégias, mas não as estamos fazendo intencionalmente. Precisamos aprender a usá-las com consciência e habilidade.

Para isso, devemos adquirir uma espécie de segunda educação, pois nossa primeira educação foi muito focada em como usar o cérebro.

Na verdade, vejo cada vez mais professores interessados ??nisso porque são os que mais percebem os limites do modelo atual.

BBC – O que é “desigualdade de extensão”, um conceito que você aborda em seu livro?

Murphy Paul – Este é um tema muito importante para mim, algo que, enquanto eu estava escrevendo o livro, me atingiu em cheio.

Pensamos na inteligência como uma quantidade fixa em nossa cabeça, como um caroço em nossa cabeça que é maior ou menor, e que podemos medir e então classificar as pessoas de acordo com o quão inteligentes elas são.

Mas se o quão inteligentes somos depende tanto desses recursos externos, de quão bem podemos e sabemos usá-los, mas também de se eles estão disponíveis para nós ou não, então essa ideia de que a inteligência é algo inerente, fixo e inato simplesmente não tem sentido.

Depende da acessibilidade dessas extensões mentais, que não são distribuídas igualmente.

As pessoas não têm o mesmo acesso ou liberdade para movimentar o corpo, aos espaços verdes, aos locais tranquilos para fazer o seu trabalho ou às redes de mentores e professores que os podem ajudar com o seu pensamento, só para citar alguns exemplos.

Portanto, acho que quando você começa a pensar dessa maneira, a desigualdade de extensão se torna realmente difícil de ignorar ou negar.

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