60 ANOS, 60 HISTÓRIAS – Uma vila para o Planalto

“Vou construir uma casinha
No alto do cerrado
A casa é de pau-a-pique
Forrada com eucatex”, Ary Toledo em “Rosinha”

 

 

O acampamento da Novacap era completo, mas restrito aos trabalhadores da Companhia Urbanizadora da Nova Capital. Abrigava somente aqueles cujos esforços abriram o caminho para o surgimento da infraestrutura necessária para o início das obras de Brasília. Estas ficariam a cargo de empresas privadas, que acorriam ao Planalto Central, sobretudo, pela oferta de grandes e históricos empreendimentos imobiliários. Já em 1957 chegaram as primeiras, encarregadas da edificação do Brasília Palace Hotel e do Palácio da Alvorada.

Eram, respectivamente, a Rabelo e a Pacheco Fernandes. Com volumoso número de operários sob seus cuidados, fazia-se primordial às empreiteiras providenciar local para repouso, meio de transporte do acampamento até as obras e comida, além, claro, do pagamento pelos serviços prestados pelos trabalhadores. Os dois primeiros quesitos foram resolvidos com uma simples ideia geográfica: instalar acampamentos nas redondezas das obras tocadas por elas.

Assim, os primeiros alojamentos privados da futura capital se ergueram no dia 3 de abril do segundo ano de atividade no cerrado, entre os canteiros de obras do hotel e da residência do chefe do Executivo e a meio passo da área reservada à lâmina d’água que refrescaria o novo centro administrativo do país. À medida que o eixo das obras se deslocava para a Zona Central, com as providências iniciais para os palácios do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, alguns acampamentos chegaram às margens da Esplanada dos Ministérios, no que atualmente conhecemos como via N1.

Vida semi-militar

Logo após o estabelecimento dos locais de moradia da Rabelo e da Pacheco Fernandes, muitas outras vieram. O material para a construção das casas deveria ser, majoritariamente, de madeira, já que todos os acampamentos seriam demolidos após a inauguração da nova capital. Ao todo, foram 22 alojamentos, instalados às margens do Plano Piloto, que ocupavam cerca de 320 hectares. Dentre eles, destacavam-se, além dos dois citados, os do Departamento de Força e Luz (DFL), da Nacional, da Atlas, da Pederneiras, da Tamboril, e dentre tantas outras, de uma empresa que batizou a região: a Planalto.

Com distância mínima entre si, os acampamentos tinham um rígido controle no trânsito interno de trabalhadores. Grande preocupação dos patrões, a bebida alcoólica era proibida nos recintos, bem como a presença de mulheres. Num país tão desigual quanto o Brasil — sobretudo naqueles tempos, mas ainda hoje —, até num ambiente de esforço coletivo, de união em torno de um objetivo grandioso como a construção de Brasília, havia estratificação social.

As injustiças e os abismos entre as classes eram reproduzidos dentro dos acampamentos. Tanto é que os trabalhadores braçais (pedreiros, carpinteiros, serventes) solteiros eram alojados em grandes galpões coletivos, enquanto os casados possuíam direito a uma casa, ainda que minúscula e mal erguida. Mestres de obras dormiam em casas com o dobro do tamanho da dos operários. Em grupos, para os solteiros; com a família, se casados.

A Casa Grande dos alojamentos ficava por conta dos engenheiros. A eles, independentemente do estado civil, eram reservadas casas espaçosas, com espaços verdes abundantes e nas melhores localizações dos acampamentos — geralmente nos centros. As vigas que se erguiam sobre as cabeças dos engenheiros, por exemplo, derivam das qualificadas madeiras trazidas do Paraná, conforme conta Leiliane Rebouças, autora de Vizinhos do poder: História e Memória da Vila Planalto, cujo lançamento foi adiado pelo surto de coronavírus que assola o mundo.

Cada empresa fornecia aos operários alguns serviços básicos nas suas moradias, como, por exemplo, os restaurantes. “Doutores”, diretores e mestres de obras não faziam as refeições no mesmo espaço dos operários, não dividiam banheiros — individuais para os de maior hierarquia — e, por fim, “não se misturavam”. Assim, a contradição do projeto de Lúcio Costa para a capital, onde desejava reunir as diversas ramificações sociais num só avião, já decolava corrompida. Com as relações intersociais limitadas às funções na construção, restava ao proletário dialogar entre si, independentemente do empregador.

É desta prática que deriva o nome atual da vizinhança. Conhecido pelas refeições de boa qualidade — também quantidade — servidas aos operários, o estabelecimento da construtora Planalto passou a ser frequentado por proletários de outras companhias aos fins de semana. De tanto movimento, a empresa acabou batizando a região onde se firmaram os resistentes candangos, à revelia da vontade governamental.

Apelo ao presidente solidificou a Vila

Leiliane Rebouças não viveu a construção, mas cresceu em meio a ela. Filha de operário, nasceu em 1976, ano da morte de Juscelino Kubitschek. À época, a Vila Planalto, ainda uma invasão aos olhos do poder público, vivia parada no tempo, com a infraestrutura de quase duas décadas antes oferecida aos moradores. Em meio às casas de madeira e outros materiais improvisados (como pedaços de plástico, lonas e madeirite), o esgoto corria livremente, a população não tinha assistência médico-hospitalar e quase pouca oferta educacional, e muito menos transporte público.

Ainda criança, em 1986, a família se dirigiu à calçada do Palácio do Planalto para acompanhar a cerimônia de descida da rampa do então presidente José Sarney, primeiro presidente civil após a Ditadura Militar instaurada em 1964. Com ímpeto, Leiliane furou a segurança e se aproximou do político, a quem entregou uma carta. A militância vinha de casa. A mãe e a irmã da então garota faziam parte do Grupo das Dez, movimento de donas de casa da região pela regulamentação da Vila Planalto.

Sensibilizado, Sarney convocou o então governador biônico do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira — nomeado pelo maranhense – para que se iniciaram as discussões a respeito do futuro da Vila Planalto, que seria tombada pelo Patrimônio Artístico e Cultural do DF em 1988. Ainda assim, a militância de Rebouças perdura até hoje, quando diversas residências já perderam as características que as consagraram como patrimônio do novo Distrito Federal.

Os primeiros toques do futebol local

Outro ponto de estresse durante os fins de semana eram as “saidinhas” dos operários. Pago semanalmente aos sábados, o salário dos candangos agitava os domingos na Cidade Livre, único núcleo com disponibilidade de serviços naquele “fim de mundo” que era Brasília. Com bares, cinemas, casas de jogos e prostíbulos, a região aglomerava os operários nos poucos e breves momentos de lazer disponíveis aos trabalhadores braçais, como veremos na próxima reportagem.

O problema, como em toda boa farra, vinha na manhã seguinte: as segundas-feiras registravam certo “corpo mole” de quem passava o dia anterior em meio às tentações mundanas. Para conter o estrago, os administradores dos acampamentos — ou seja, funcionários de maior hierarquia dentro das empresas — limitavam serviços básicos aos sábados e domingos. O fornecimento de água, por exemplo, era interrompido às sextas-feiras e só normalizada na noite de domingo.

Nos anais da Vila Planalto, passados oralmente de pais e mães a filhos e netos, é comum ouvir que “Getúlio Vargas nos deu as Leis Trabalhistas que JK rasgou para construir Brasília”. Forma menos cruel de controle da massa proletária veio de uma crescente paixão do povo brasileiro: a bola. Incentivados pelos empregadores, os candangos passaram a formar times e disputar “peladas” em campos improvisados. Sem muita concorrência, logo surgiram os primeiros times semiprofissionais de Brasília, sempre representando as empresas que se dedicavam à infraestrutura.

O primeiro a se estruturar veio do DFL, conhecido, pela fonética da sigla, como Defelê. Dizem os mais antigos que futebol sem rivalidade é brincadeira de criança. Então, a Rabelo criou também uma representação para formar o clássico “Rabelê”. Os duelos aconteciam em dois campos, de início, improvisados, mas que ganharam forma posteriormente. O da Rabelo ainda preserva as traves, enquanto os vestiários se tornaram casas na praça central da Vila Planalto. Recentemente, o Real Brasília reformou o estádio do Defelê, reinaugurado no Campeonato Candango de 2020.

 

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