A Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e a Psicologia do “Caminhar”: uma questão de saúde mental

Por Padre Gegê

Mestre em teologia e psicólogo clínico pela PUC-RIO, pós-graduado em psicologia junguiana pelo Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR) e Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP.

Caminhar faz bem à saúde! Bora Caminhar?
Por ancestrais desígnios, a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa ocorre, anual e tradicionalmente, no mês morado desde 2015 de  setembro Amarelo, consagrado à prevenção do suicídio e à promoção da saúde mental.
Em nossa reflexão, que poderia ser intitulada “a dimensão psicológica profunda do Caminhar”, queremos articular o valor da Caminhada em defesa da Liberdade Religiosa sob as lentes da psicologia arquetípica do pos- junguiano James Hillman (1926-2011).

Cultivar uma leitura arquetípica da realidade exige ver mundo à luz do simbólico ou da alma. “Só se vê bem com o coração”.  Aconselha Leonardo Boff: é preciso escutar os arquétipos! E isso exige, segundo o teólogo, “dar atenção à voz de nossa  interioridade e criar espaço para que ela se manifeste”. Clementina de Jesus sabia disso , por isso cantou: “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais…”.
A pergunta fundamental do nosso texto é: qual é o valor psicológico ou simbólico do Caminhar?
Podemos, a partir do pensar de James Hillman na obra “A cidade e a alma”,  interpretar o Caminhar como trabalho da psique buscando a integração do humano e potencialização da saúde psíquica. Refletindo sobre o Caminhar relata sugestivamente Hillman: “No meu trabalho terapêutico com pessoas descobri que, em período de intensa desordem psíquica, elas naturalmente resolvem caminhar”. Escreve ainda o psicólogo americano: “Saímos para caminhar para dar um ritmo orgânico aos estados mentais depressivos”. Em estado de extremo medo ou pavor nossos pés tendem a paralisar. Sustenta ainda Hillman: “Há provavelmente uma cura arquetípica no caminhar, algo que afeta profundamente o substrato mítico de nossas vidas”. Então, sob o ângulo da psique profunda, Caminhar tem razões (ou motivações) que a própria razão desconhece. Essa afirmação tem extraordinário valor para o povo preto que, desde o passado do mundo, aprendeu a dizer no pé.

Não Caminhar é não ser; e nem pensamento. Não sem razão, “a cabeça pensa por onde os pés pisam”. Caminhar é conhecer. Pensamos e dizemos no pé! Considero, pois,  a reflexão sobre o Caminhar como necessária neste mês, conforme já dito, dedicado à saúde mental. Caminhar é uma narrativa humana por excelência; logo, psíquica. O ser humano que foi pensado como um ser exclusivamente racional (“penso, logo existo), é não menos um ser que caminha, um peregrino, um viajante, um andarilho – um caminhante. Essa verdade foi inscrita no mais íntimo do nosso ser e no mais profundo de nossos pés, desde o solo africano. Lá demos nossos primeiros passos. Na obra “Transcendência” o teólogo  Leonardo Boff lembra que “o australopiteco piticino, que era uma mulher, Luci, era uma mulher de transcendência”. E diz o teólogo: “Ela deixou as florestas da África e começou a andar na savana árida…”. Caminhar sempre foi preciso! Não podemos esquecer essa verdade: foi no ventre da Mãe África que começou a grande, perigosa e incerta Caminhada da humanidade.
Comenta com refinada ironia o historiador Joseph Ki-Zerbo: ” Se Adão e Eva tivessem aparecido no Texas, ouviríamos falar disso todos os dias na CNN”. Desse modo, quando a Comissão de Combate à Intolerância do Rio de janeiro (CCIR) fala de Caminhada, está, no subterrâneo, falando de conexão com nosso passado ancestral, e com nosso futuro também! No Caminhar, quando um pé vai para frente o outro fica para trás, na alternância esquerdo/direito. Hillman oferece uma leitura simbólica desse movimento, segundo a qual Caminhar conecta! Nessa altura de nossa reflexão poderíamos sustentar a formulação: Caminho, logo existo!
A tradição judaico-cristã fala de um Deus que ouviu o clamor do povo e desceu para caminhar com ele; fez-se companheiro de estrada – um caminhante. Tudo é caminho!

Há um ensinamento budista segundo o qual só completando a caminhada de doze dias de Kamakura a Quioto se pode contemplar a lua linda da capital. Quem desiste no décimo- primeiro, por exemplo, não pode ver a beleza da lua. A sabedoria budista ensina que é preciso – passo a passo –  completar a caminhada. Disse o Papa Francisco, diante da multidão, no dia de sua posse: “vamos fazer um caminho, bispo e povo…”. Todas as religiões não são, ao fim e ao cabo, caminhos? Fica evidente que não podemos pensar a vida sem o Caminhar. Lembro a bonita canção: “Caminheiro, você sabe, não existe caminho. Passo a passo, pouco a pouco, e o caminho se faz”. Em perspectiva Iorubá, Exu é a divindade dos caminhos, das encruzilhadas – o senhor dos mundos.
Hermes, o deus da comunicação na mitologia grega, tem asas nas sandálias dos pés. O malandro traz consigo a competência ancestral da caminhada noturna da alma. A cidade também caminha! Sustenta Bezerra da Silva: “malandro não dorme e nem cochila”. Somos – todas/todos/todes – andarilhos: caminhamos pra viver, e vivemos pra Caminhar! O perigo do Caminhar está naqueles e naquelas que só sabem andar sozinhos, porque se juntam maiores e melhores que os outros. Ensina Dom Hélder Câmara: “É possível caminhar sozinho. Mas, o bom viajante sabe que a grande caminhada supõe companheiros. Companheiro, etimologicamente, é quem come do mesmo pão”. E diz ainda o bispo vermelho: “O bom caminheiro preocupa-se com os outros”.
Em chave junguiana, no livro “A águia e a galinha”, Leonardo Boff pensa “o caminhante ou o peregrino” como  dimensão  necessária do ser humano na construção de si mesmo (herói/heroína). Escreve o teólogo: “É uma árdua caminhada”. A propósito, o próprio Jung lê o processo de individuação (“ser o que se é”) como uma caminhada –  “longuíssima via”. Pelo exposto, podemos dizer que o ser humano quanto mais caminha mais se humaniza. Caminhar é vital… É ancestral! O povo preto, forjado na encruzilhada, é perito no Caminhar. Encruzilhados atravessamos a calunga grande. Transformamos as madeiras dos tumbeiros em instrumentos de percussão. E isso é tudo! Lembra Antônio Simas que “encruzilhadas são perspectivas de mundo.
O professor e Babalawô Ivanir dos Santos exibe essa antiquíssima verdade quando sustenta, no livro e na vida, que “Marchar não é caminhar”. A marcha exige a domesticação e o enquadramento dos corpos (“quem não marchar direito vai preso no quartel”).  O Caminhar, ao contrário, reclama corpos inegociavelmente livres! Argumenta com propriedade James Hillman: “Andar acalma. Prisioneiros circulam no pátio, animais andam de um lado para o outro em suas jaulas, a pessoa ansiosa mede o chão com seus passos: esperando o bebê nascer ou as notícias da sala da diretoria. Heidegger recomendava o caminho na floresta para filosofar; a escola de Aristóteles era chamada ‘Peripatética’ – pensar e discursar enquanto se caminha; os monges andavam em seus jardins fechados. Nietzsche disse que só tinham valor as idéias que ocorriam do caminhar…idéias correntes, não idéias sentadas”.

Numa sociedade adoecida e movida por automóveis, computadores, tablets e celulares, talvez nossos pés (e nossas mentes) estejam reclamando um pouco mais de Caminhada. Caminhar é preciso!Recorda oportunamente Hillman: “No Egito antigo uma das principais convenções hieroglíficas para Bá, a alma, era a barriga da perna e os pés, a parte inferior das pernas como que dando um passo. A alma caminhava”. E o psicólogo deixa a pergunta: “quando não mais caminhamos, o que acontece com a alma?”. É hora de findar… Faço minhas as palavras de Abdias Nascimento: “… tenho muito a caminhar, muita encruza a farejar”. Termino, pois, o escrito sobre uma leitura psicológica do Caminhar firmando ponto, à partir de um umbandístico ponto,  que há poucos dias ouvi da boca ancestral da ialorixá Ofa (São Roque), quando amorosamente falávamos ao telefone: “Santo Antônio de Pemba caminhou sete anos… Mas, como caminhou… Santo Antônio de Pemba, como caminhou…”. Ora, se o Santo caminha, por que não eu?

Dedico esse texto ao queridíssimo e potente Babalorixá Pai Dário, ao futuro ancestral!

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