O Brasil não precisa de uma vacina. Precisa é de vergonha na cara

Dois episódios acontecidos na última semana mostram como o país precisa urgentemente encontrar um caminho moral claro e deixar definitivamente para trás a hipocrisia e a falta de senso de urgência

 

Começo a semana falando de dois episódios absolutamente insólitos. Na verdade me senti em um mundo paralelo. O primeiro, a abertura da loja da empresa Havan, em Belém, no Pará.

Notadamente, existem em todos os estados, decretos regulamentando como devem se dar eventos com a participação popular e qual é a responsabilidade de quem promove este evento. O evento de abertura de uma loja certamente está dentro deste escopo. Pois bem, as imagens que circularam o mundo são de um horror sem tamanho. Entendo que o dono da empresa talvez não acredite na pandemia ou discorde dos decretos, mas não seguí-los? Danem-se os clientes. Eu quero mesmo é faturar. Não se preocupar sequer com seus funcionários, que terão de lidar com as pessoas invadindo desordenadamente a loja? O resultado desta falta de organização e deste ultrajante evento foi o fechamento da loja por crime contra a saúde pública e sua autuação pela autoridade local.

Porém, pior do que o comportamento da direção da Havan, na minha opinião, foi o comportamento dos consumidores. Crianças, jovens, velhos. Todos amontoados como se fossem gado pronto para o abate (porque confinados já estavam), se espremendo para entrar na loja. Sem nenhum distanciamento. Muitos sem máscara. Como se não houvesse amanhã. Risos, gritos, festa. A prova mais cabal de que como sociedade, o Brasil deu errado. E esta é a grande verdade que muitos insistem em não falar. Talvez doa demais. Fato é que não se trata de desespero para consumir por causa da quarentena. A maior parte das cidades já está com boa parte dos serviços flexibilizados e pensando economicamente, consumo por consumo, o brasileiro está mais para quebrado, endividado e devedor de banco do que para uma sociedade de consumo plena e menos como a americana por exemplo.

A questão aqui é a hipocrisia. Certamente ali estavam pessoas que apoiam e desaprovam o governo Bolsonaro. Certamente, naquela aglomeração insana, de pessoas sem a menor racionalidade, estão evangélicos, católicos, umbandistas, espíritas e sei lá mais o que. Com certeza, lá estavam pessoas que já contraíram a COVID 19. Provavelmente também estavam pessoas que perderam alguém pela doença. Isso significa que aquela aglomeração não pode ser analisada do ponto de vista político não. Tem que ser pensada do ponto de vista antropológico. E o resultado é claro. Culturalmente (talvez até mesmo socialmente), aquelas imagens me fazem pensar que demos errado. Ahhhhhh demos muito errado. Um povo que não respeita o básico em matéria de distanciamento ou práticas de saúde em um momento como este vai reclamar do que? Do presidente? Do congresso? Do Judiciário? Do prefeito ou governador? Um povo que lava suas mãos (aqui foi ironia mesmo) e se coloca em risco e ao próximo puramente pelo descontrole emocional de entrar em uma loja em sua abertura vai reclamar do que? O povo brasileiro se acostumou a não seguir regras básicas. Do pequeno ao grande. Este é um dos motivos de estarmos em uma “draga” destas. Ou como dizem os povos do centro oeste, de estarmos no “sal”.

Este traço do comportamento da nossa sociedade deveria nos dar vergonha. Mas vergonha pesada mesmo. A mesma vergonha dos ricos e poderosos que ultrajaram a fiscalização nos bares do Leblon no Rio de Janeiro. E que se juntam a vergonha do desembargador Eduardo Siqueira, que ofendeu os guardas civis municipais em Santos, em São Paulo. Povo hipócrita. Que critica em um dia e faz travessuras no outro. Povo palhaço que ri da própria desgraça. Povo sem futuro que brinca de negacionismo e terraplanismo. Esta falta de bom senso, onde tudo vira meme e achamos graça é o motivo de sermos um país pobre. E mais do que pobre em riqueza, nos tornamos pobres em espírito. Imaginem o que seria do Brasil e da nossa sociedade em um período de guerra por exemplo. Períodos experimentados por sociedades como a alemã, a coreana, a japonesa, a polonesa, a russa, a inglesa, entre tantas outras. Não duraríamos 6 meses.

O outro episódio que me proponho a comentar foi a soltura do traficande André do Rap, do PCC, a maior organização criminosa da América do Sul atualmente (sim leitor, não exportamos apenas agro não) e que agora está no centro de debates entre os ministros do STF, Marco Aurélio Mello (que deu a soltura), Luiz Fux (presidente da corte e que reverteu a soltura – porém o traficante já havia fugido para o Paraguai segundo as últimas informações) e Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados (que apoiou a decisão de Marco Aurélio Mello e criticou o Ministério Público por não fazer sua parte direito).

Vamos lá. Uma parte do que Marco Aurélio Mello disse é verdade. São os ministros do STF os guardiões da Constituição Federal. Devem, portanto, submeter-se ao império das leis constitucionalmente aprovadas e vigentes (assim como todos nós) e interpretá-las para sua melhor execução. Sob este argumento, o ministro Mello consegue sustentar a sua decisão em soltar o traficante.

Então vamos abrir um novo debate. Sim, por que é impensável ser romântico a tal ponto de acreditar que estas leis, aí postas, representam de fato a defesa da justiça ou mesmo estejam alinhadas com a contemporaneidade que vivemos. É bom lembrar ao leitor que vivemos no país onde uma doméstica ficou presa, em 2005, por 1 ano e sete meses por furtar um xampu e um condicionador no valor de R$ 24,00 ! Ou mesmo outro caso envolvendo dois frascos de xampu, cada um no valor de R$ 10,00, acontecido em janeiro deste ano, onde o ministro Felix Fischer, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), originou a decisão para a permanência da prisão de Robson Drago. Em seu despaço, Fischer afirma que como o jovem já era reincidente em pequenos furtos, sua libertação da cadeia poderia criar criar um “grande risco para a ordem pública“. Quando chegou ao STF, a ministra Rosa Weber manteve a decisão do STJ.

Claramente o código penal brasileiro precisa ser revisto urgentemente. E claramente a constituição brasileira, emendada com retalhos infinitos, assim como uma calça furada usada para festas juninas, também precisa de uma urgente e necessária revisão. E aí amigos, o papel não é mesmo do STF. O palco neste caso é o Congresso Nacional, que não deve se eximir de culpa neste momento não. Não importa se o deputado e senador são desta ou daquela legislatura. A verdade é que estamos falhando enquanto poder constituído que deveria ter a OBRIGAÇÃO de revisar a constituição brasileira. Isso sim seria respeitá-la. Mas uma revisão competente e não apenas de jogo de emendas. A falta de urgência para tratar assuntos necessários faz com que uma pessoa furte um frasco de xampu e fique mais de um ano na cadeia e um traficante da maior organização criminosa da América do Sul seja solto ao invés de ter prisão perpétua (que não tem previsão nas nossas Leis infelizmente, sobretudo para casos de sequestro, estupro e assassinato). Não é possível compreender. Não devemos querer compreender. A indignação deve sim ser demonstrada nestes momentos, pelo simples fato de que a própria sociedade está em risco. O ministro Marco Aurélio Mello pode justificar juridicamente e amparado pela letra fria das Leis a sua decisão. Mas nossa constituição é um queijo suiço (todo furado). O código penal brasileiro, assim como o tributário, é feito para que apenas possam compreender. Talvez devamos colocar o Chapeleiro Maluco, de Alice no País das Maravilhas, como patrono da justiça brasileira. Existem tantas “margens” para interpretação que o próprio império das Leis cai em descrédito. E quando isso acontece, a sociedade padece.

Seja no caso absurdo das imagens na abertura da loja da Havan, seja pela decisão do STF em libertar um dos maiores traficantes do país, a verdade é uma só e temos que enfrentá-la agora ou o faremos no momento de nossa ruína: Existe uma falência de órgãos da sociedade brasileira em andamento. Ela acontece em parte do Governo Federal (pelo negacionismo e radicalismo no discurso e propostas). No Legislativo (pela permanente falta de senso de urgência ou comprometimento com o que de fato pode beneficiar a sociedade brasileira). Ela acontece no Judiciário (pelo anacronismo de um sistema analógico, por vezes putrefato e de corporativismo irracional, sem se preocupar verdadeiramente com um avanço do conceito de JUSTIÇA para TODOS). E ela também acontece na sociedade em geral. No privado, com empresários que se aproveitam de uma pandemia para explodir o preço do arroz ou na alta de combustíveis por exemplo (não estou falando de aumento, oferta e demanda, mão invisível do mercado, que é legítimo. Estou falando de sacanagem mesmo) e em pessoas hipócritas, que sob o pretexto de povo alegre, povo do futuro, povo bondoso, escondem a sua completa falta de noção, pela qual o brasileiro tem sido conhecido em todo o mundo.

É triste, mas precisa ser dito. Estamos em um caminho ruim como sociedade. Talvez haja esperança. Talvez. Mas sem uma profunda reflexão e medidas concretas (e parece que somos ruins nisso) não existirá o conceito de nação nem uma sociedade minimamente racional e coerente. Seremos apenas mais um bando de babuínos desordenados. As palavras Ordem e Progresso, no centro da nossa bandeira parecem não fazer mais sentido algum. ;-(

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