Especialistas atribuem levantes sociais em países da região à fragilidade democrática, à incapacidade dos sistemas políticos de processarem demandas populares e ao neoliberalismo
Manifestantes reprimidos pelas forças de segurança, em cenas que remontam aos anos de chumbo. O mês de outubro cortejou as memórias da ditadura na América do Sul. Tudo começou no Equador, quando o direitista Lenín Moreno pôs fim aos subsídios sobre os preços dos combustíveis, o que levou a uma alta exorbitante. Os confrontos com a polícia deixaram oito mortos. Onze dias depois, Moreno retrocedeu e anulou o decreto. Outra revolta social impactou o Chile, e um protesto contra o aumento na tarifa do metrô se tornou ato contra o também direitista Sebastián Piñera. Acuado, o presidente impôs toque de recolher em Santiago e nas principais cidades do país. Saques, violência e reação desmedida dos militares fizeram 23 mortos nas últimas duas semanas. Na Bolívia, suspeitas de fraude nas eleições que deram o quarto mandato ao socialista Evo Morales também detonaram um levante popular. Especialistas consultados pelo Correio atribuem a instabilidade nessas nações a uma crise dos processos democráticos na região.
Professor de política comparativa e da América Latina pela London School of Economics (LSE), o uruguaio Francisco Panizza admite que as democracias nessa área do planeta sofrem de um conjunto de debilidades importantes. “Elas incluem fragilidades dos mecanismos de representação política, tais como partidos; percepções de que os governos beneficiam poucos, e não a maioria da população; serviços públicos de má qualidade; altos níveis de corrupção; e quase nenhuma confiança nas instituições”, observa. “Se a isso somarmos níveis de desigualdade bastante altos e economias que cresceram pouco ou nada nos últimos cinco anos, temos todos os ingredientes para o mal-estar político atual.”
Panizza recorda que o Brasil e o Chile eram reconhecidamente as democracias mais consolidadas da América Latina. “Os eventos dos últimos anos e das últimas semanas nos mostram que importantes patologias políticas e sociais estavam ocultas por trás dessa percepção, especialmente sistemas políticos com baixa capacidade de processar demandas sociais legítimas, além da falta de mecanismos institucionais de participação política”, comentou. A recente eleição da chapa peronista Alberto Fernández—Cristina Kirchner na Argentina sugere, segundo Panizza, que a democracia está muito mais arraigada. “As recentes eleições são exemplo de sistema político organizado em um bloco de centro-esquerda e em um de centro-direita, sem espaço para atores extrainstitucionais”, disse. “No caso do Brasil, houve uma ‘tormenta perfeita’ entre 2015 e 2017, com a combinação da recessão e da Operação Lava-Jato. Além do que se pensa do governo de Jair Bolsonaro, creio que o sistema político tem condições de se recompor em algo melhor, mas isso levará tempo. Enquanto isso, as instituições políticas têm um papel muito importante em limitar as tendências antidemocráticas.”
Tensões
Para Juan Battaleme, especialista em defesa e em política externa do Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina (Cema), existem diversos graus de institucionalização dos processos democráticos na América Latina. “O principal problema é que esses processos não canalizam nem resolvem tensões sociais, as quais se dirimem nas ruas, como ocorre sempre em todos os movimentos que emergem de sistemas políticos em crise”, explicou. Ele adverte sobre o risco de convulsão social no Brasil e lembra que ele se insere na instabilidade dos oficialismos, perpassando rótulos de esquerda ou direita. “Quando os oficialismos são de direita ou ‘não populares’, as expressões ‘anti’ se tornam muito abertas e explícitas. A resistência à potencial instauração de governos populistas é igual em todos os países. Não se trata de falar de ganhadores e perdedores, mas da expectativa de milhares de homens e mulheres sobre seu futuro e sua integração funcional na sociedade.”
O boliviano Máximo Quitral — diretor do Instituto de Política Latino-Americana (Ipolat), em Santiago do Chile — entende que as democracias sul-americanas não estão robustas e enfrentam reverberações das ditaduras. “Os fantasmas dos golpismos seguem presentes. O presidencialismo é uma fórmula um tanto esgotada, precisa de revisão, pois não soube apresentar solução concreta ao mal-estar popular”, explicou. Segundo Quitral, os protestos no Equador, e em especial no Chile, respondem a uma dor social contra o sistema neoliberal. Ele acusa os governos de direita de impulsionarem medidas que têm reforçado o neoliberalismo. “O que se observa é um cansaço social de um sistema econômico que privilegia a minoria, em detrimento da maioria. Se, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro pensa em aplicar medidas similares às impulsionadas no Chile, as probabilidades de convulsões sociais são altíssimas, sobretudo pelo fato de o país estar bastante polarizado.”
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