Apesar da regulamentação, índice de ilegalidade no setor chega a 40% no Brasil, enquanto que, no Reino Unido, é de 13%
Mesmo após a regulamentação do setor de apostas no Brasil, empresas ilegais de jogos on-line continuam operando e movimentando um volume significativo de dinheiro no país. Com a promulgação da Lei nº 14.790/2023, que estabeleceu um marco regulatório claro para a atividade, esperava-se um cenário de maior controle e transparência. No entanto, a fiscalização ainda enfrenta desafios, e estima-se que o mercado clandestino representa cerca de 40% da indústria de apostas no Brasil, um índice preocupante quando comparado ao Reino Unido, onde apenas 13% das apostas ainda ocorrem fora da legalidade.
Conforme estimativas do Banco Central, de setembro de 2024, os brasileiros gastaram cerca de R$ 20 bilhões por mês em apostas on-line. Logo, as bets ilegais devem lucrar, pelo menos, R$ 8 bilhões por mês, ainda sem pagarem os R$ 30 milhões de taxa de funcionamento para o governo.
O consultor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), Bernardo Freire, alerta para os impactos do mercado ilegal, que, além de fraudar os cofres públicos ao não recolher impostos, coloca os apostadores em risco, sem garantias de segurança e proteção de dados. A presença maciça de plataformas ilegais no Brasil prejudica tanto a arrecadação do governo quanto a credibilidade das empresas que atuam dentro da legalidade. Para Talita Lacerda, diretora-executiva de operações da Ana Gaming, é essencial que o país bloqueie sites que não respeitam a legislação do país. “O bloqueio de sites ilegais no Brasil é um marco essencial para a evolução do setor. Essa iniciativa assegura a integridade do mercado, protege os jogadores e destaca empresas sérias e regulamentadas como verdadeiros pilares da indústria”, afirma Lacerda.
A regulamentação trouxe um conjunto de exigências para que as casas de apostas operem legalmente, incluindo licenças emitidas pela Secretaria de Prêmios e Apostas, medidas de proteção ao consumidor e o pagamento de tributos sobre as operações. No entanto, muitas empresas seguem ignorando essas normas e continuam atuando sem licença, competindo de forma desleal com as apostas regulamentadas.
O advogado José Francisco Manssur, que participou da elaboração das regras para a regulamentação do setor, defende um combate rigoroso ao mercado clandestino. Segundo Manssur, a adoção dessas estratégias poderia reduzir significativamente o mercado clandestino, aproximando o Brasil de índices como os do Reino Unido.
Bloqueio
Segundo os especialistas, uma das formas mais eficazes de combater as bets ilegais é dificultar sua movimentação financeira. João Fraga, CEO da Paag, uma startup de tecnologia especializada em transações financeiras para o setor de apostas, destaca que as facilitadoras de pagamento têm um papel crucial no bloqueio das empresas clandestinas.
“As instituições facilitadoras de pagamento apresentam importante papel para impedir que sites clandestinos operem no Brasil. Na Paag, por exemplo, atuamos em parceria somente com casas de apostas regulamentadas, que obedecem às boas práticas”, pontua Fraga. Ele acrescenta que, sem meios financeiros para operar, essas empresas perdem capacidade de atuação, o que reforça a importância da colaboração entre o setor financeiro e os órgãos reguladores.
“Não processar pagamentos de casas não regulamentadas é uma responsabilidade que deve ser compartilhada por todas as processadoras de pagamento do setor. Sem meios financeiros, essas operações clandestinas perdem a capacidade de atuar, protegendo jogadores, empresas sérias e todo o ecossistema”, conclui Fraga.
Acessos
O mercado de apostas esportivas no Brasil segue em franca expansão e já supera até mesmo o tráfego de sites de conteúdo adulto, tradicionalmente líderes de audiência na internet. De acordo com um levantamento do Aposta Legal Brasil, os 100 maiores sites de apostas que operam no país registraram impressionantes 6,68 bilhões de acessos entre janeiro e novembro de 2024. O volume de visitas cresceu trimestre a trimestre, atingindo 2,7 bilhões de acessos no terceiro quadrimestre do ano.
Os números são ainda mais expressivos quando comparados com outras categorias populares na web. Em outubro, os sites de apostas tiveram 970 milhões de acessos, um volume 28% maior do que a soma dos dois principais sites de conteúdo adulto. Além disso, esse número foi cinco vezes superior aos acessos combinados da Wikipédia e do ChatGPT no mesmo período.
O aumento no tráfego reflete o crescimento do setor no Brasil. Segundo dados do Instituto Locomotiva, milhões de brasileiros começaram a apostar apenas nos primeiros sete meses de 2024, uma média de 3,5 milhões de novos apostadores por mês. Esse crescimento acelerado reforça a importância da regulamentação do setor, estabelecida pela Lei nº 14.790/2023, que busca garantir a transparência nas operações e proteger consumidores.
Apesar dos avanços regulatórios, especialistas alertam para um dos principais riscos do setor: a ludopatia, transtorno psicológico caracterizado pelo vício em jogos de azar. Um estudo publicado pela revista médica The Lancet estima que 8,7% da população mundial apresenta algum grau de problema com jogos de apostas, um percentual que acende o alerta para os impactos sociais dessa indústria.
Medidas para combater o vício
Em resposta às preocupações sobre o vício em jogos, algumas das maiores plataformas de apostas que atuam no Brasil decidiram aderir ao programa Compulsafe, desenvolvido pela Empresa Brasileira de Apoio ao Compulsivo (Ebac). O objetivo da iniciativa é ajudar apostadores compulsivos a reconhecer e tratar o problema, garantindo um ambiente mais responsável para o setor.
“Quando detectamos um comportamento de risco, realizamos acolhimento e garantimos toda a atenção necessária para o tratamento adequado”, explica Ricardo Magri, diretor-executivo da Ebac. O programa oferece suporte personalizado, com análises profissionais e planos de ação específicos para cada apostador, que podem incluir até oito semanas de acompanhamento psicológico gratuito, a fim de reforçar a imagem de responsabilidade das bets e tornar o ambiente de apostas mais seguro.
Gabriel Oliveira, diretor jurídico do Grupo Esportes da Sorte, destaca que os sites regulamentados estão atentos para garantir que seus clientes apostem de forma segura e evitar que os usuários não se tornem em apostadores compulsivos. De acordo com João Studart, CEO do Grupo NSX, a regulamentação é importante para tornar o ambiente de apostas on-line mais seguro. “A parceria com a Ebac e a adoção do programa Compulsafe reforçam nosso compromisso com um ambiente de apostas seguro e responsável, alinhado às novas exigências regulatórias.”
A Casa de Apostas, que também aderiu ao programa, afirma que a iniciativa faz parte de um compromisso para equilibrar a diversão e a responsabilidade, com a perspectiva de que “apostar deve ser visto apenas como entretenimento, não como um investimento”, segundo o head de Negócios, Anderson Nunes.
E, para combater os clandestinos e reduzir os impactos sociais do vício em apostas, o governo estuda medidas mais rígidas de controle. Advogado especializado em mercado de gaming, Rubio Teixeira acredita que um dos principais desafios é equilibrar o crescimento do setor com a necessidade de proteção aos consumidores. Especialistas também apontam que as instituições financeiras podem desempenhar um papel crucial na regulamentação, impedindo que sites ilegais processem transações. Algumas empresas, como a Paag, implementaram políticas rigorosas para bloquear pagamentos a operadoras não regulamentadas. “Sem meios financeiros, essas operações clandestinas perdem a capacidade de atuar”, destaca João Fraga, CEO da Paag.
A EstrelaBet, como forma de prevenção, instaurou ferramentas de controle, como limitação de tempo de acesso à plataforma, por exemplo.
O que diz a regulamentação
A regulamentação do governo diz que o papel do Estado é “estabelecer as regras de jogo responsável, monitorar o comportamento das próprias empresas e quando for o caso dos apostadores, verificar o grau de incidência de jogo problemático, fazer ações de fiscalização e eventualmente de sanção das empresas que não respeitarem as regras de Jogo Responsável”. De acordo com o Ministério da Fazenda, as punições podem chegar até a cessação da autorização.
“Outra ação do governo é monitorar a publicidade dos sites de apostas, determinando a derrubada da publicidade dos sites ilegais e verificando se a publicidade dos sites autorizados segue as regras baixadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA). É também papel do governo combater os sites ilegais, que na média revelam-se mais prejudiciais aos apostadores”, afirmou a SPA, em nota ao Correio.
Outra frente da Fazenda é a promoção da educação e esclarecimento para a população sobre as apostas. “Apostar é um passatempo, não uma forma de tentar ganhar dinheiro. A experiência internacional mostra que os apostadores que encaram as apostas da maneira correta têm menor chance de ter problemas de jogo problemático”, ressaltou. E, para que essa medida seja assegurada, a Fazenda e os ministérios do Esporte, da Saúde e a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República criaram em dezembro um grupo de trabalho para “estabelecer ações conjuntas de promoção do Jogo Responsável e combate ao jogo problemático”.