Como viver o papel masculino valorizando os aspectos positivos e fugindo do estereótipo violento e machista? Não existe fórmula mágica, mas cada vez mais homens buscam esse caminho
Homem não chora. Isso é coisa de mulherzinha. Meninos não usam rosa nem brincam de boneca. Homem não fala sobre sentimentos… Muitos garotos cresceram — e ainda crescem, em pleno século 21 — ouvindo frases desse tipo. Ensinado desde a infância, e não algo inerente ao gênero, tal padrão de comportamento tem sido tema constante de análise e ganhou até nomenclatura: masculinidade tóxica.
Mas o que, de fato, ela significa? Especialistas classificam a masculinidade tóxica como um braço do machismo que tem como alvo meninos criados para se tornarem homens dominadores e sem características vistas como femininas, como sensibilidade e empatia. Mulheres e meninas, consequentemente, se tornam as vítimas finais dessa violência, tendo suas características e seu gênero vistos como inferiores e mais fracos. Mas, sobretudo, a repetição de tal padrão se torna tóxico para o próprio homem, quem sofre com ele.
Enxergando os efeitos nocivos da masculinidade tóxica em si mesmos, em suas relações interpessoais e na sociedade, diversos homens iniciaram um processo de desconstrução e buscam auxiliar outros a seguir o mesmo caminho. O projeto Casa dos Homens é um deles. Criado em 2012, ele é comandado pelo italiano Paolo Cirola, educador social com formação psicoterapeuta que está no Brasil desde 1994. Paolo divide a liderança do programa com o psicólogo Lucas Nóbrega, 33.
A iniciativa, que começou com 10 participantes e agora tem cerca de 300, surgiu a partir de um grupo de estudos. Hoje, conta com palestras, atividades terapêuticas, exercícios corporais e rodas de conversa. Ao ver que uma colega tinha criado um grupo feminino, Paolo achou que uma iniciativa semelhante para o público masculino seria positiva. A ideia era ter um espaço seguro e terapêutico para o diálogo.
Nos encontros, é trabalhado o conceito do que é ser homem, com conversas sinceras sobre sentimentos, inseguranças e como mudar padrões comportamentais enraizados. “É um lugar em que ele se sinta seguro para se abrir. Sentimos a necessidade de ter um grupo que não seja o da cerveja ou do futebol — em que, geralmente, os homens não se colocam naturalmente nem falam de si”, acrescenta Paolo.
O psicoterapeuta ressalta que o que era visto como masculino há algumas décadas vinha pautado em força e violência e, em muitos casos, ainda funciona dessa forma. Porém, existe um processo de mudança. “Nos últimos anos, os homens foram para outro espaço. À medida que as mulheres se empoderam e buscam os direitos delas, eles também se encontraram em outro lugar.”
Paolo acredita que muitos homens querem mudar e sair do estereótipo que resulta em malefícios, tanto para eles quanto para elas, mas ainda se encontram um pouco perdidos no processo de desconstrução de papéis de gênero estabelecidos e perpetuados por milênios. “Ensinamos às crianças a não chorar, dizemos para os garotos que eles precisam reagir, que não podem errar ou sofrer, que precisam ser violentos, caso queiram ser respeitados. É uma construção contínua de uma versão dura e sem sentimentos.”
E aí se encontra a importância de projetos que incentivem a desconstrução. Para Paolo, o processo depende da intenção dos homens de caminhar em direção à abertura dos sentimentos e da integração da sensibilidade como parte de sua natureza. O psicoterapeuta afirma que, ao longo dos anos, já viu diversos homens mudando e se abrindo, descobrindo uma forma nova de viver.
Uma questão histórica
Ana Paula Antunes Martins, professora do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB), ressalta a importância de não perceber o masculino e o feminino como características essenciais e naturais, mas sim como uma construção social. “De certa forma, marcada por uma depreciação das características femininas e uma construção do masculino pensada como um lugar de força, de violência.”
O psicólogo Sérgio Henrique Souza Alves, professor do Centro Universitário Iesb, explica que esse conceito nocivo de masculinidade foi construído socialmente com origem que remonta à Grécia Antiga, passando pela Revolução Francesa e chegando até os dias atuais. “Toda essa história formatou a ideia de que o homem não pode chorar, que é forte, que não tem fraqueza, que não erra. Óbvio que na prática não funciona assim.”
É importante entender que a masculinidade em si não é o problema, mas sim a construção machista acerca dela. É possível vivenciar a masculinidade de forma saudável, a partir da desconstrução e de formas diferentes de criar meninos e meninas. “A violência contra as mulheres tem como uma das fontes essa visão tóxica da masculinidade. É algo que precisa ser discutido desde a infância para que aos meninos também seja dada a possibilidade de manifestar emoções, o que muitas vezes é proibido pela sociedade”, explica Ana Paula.
Sérgio acrescenta o quanto é importante que cada homem entenda os próprios atos machistas e como isso funciona dentro dele. Depois do reconhecimento, deve vir a busca de ajuda para se modificar. “A questão cultural é uma mudança muito lenta e demorada, que precisa de ação contínua.”
Como ser um homem melhor:
- Dialogue: falar sobre os sentimentos, especialmente em momentos difíceis, não fará de você uma pessoa mais fraca ou menor. Pelo contrário, pode ser uma chance de evitar muitos problemas.
- Questione atitudes machistas dos amigos: você não será mais ou menos aceito se rir daquela piada machista do amigo no bar.
- Aprenda a ouvir (especialmente as mulheres): ler livros sobre o tema, assistir a documentários e, sobretudo, prestar atenção ao que as mulheres estão falando sobre o tema pode ser uma boa chance de começar a entender o problema.
- Machismo é diferente de masculinidade: não confunda um com o outro, ser homem não tem como característica o machismo.