A viagem a Roraima não é das mais fáceis. Gasta-se um dia todo e parte da noite de São Paulo até a capital, Boa Vista. Mas compensa.
E o compensar, para uma equipe de jornalistas, é poder ir ao encontro dos fatos, testemunhar como eles realmente acontecem. Aqui, estamos vivendo isso desde as primeiras horas da terça-feira, 11 de outubro.
Foi quando os militares das Forças Armadas do Brasil nos receberam e abriram as portas da Operação Acolhida para nossas câmeras e microfones. O que vimos, garanto, é surpreendente.
São histórias e mais histórias com um único fio condutor: a situação caótica em que a Venezuela está inserida. As consequências dos anos de desmandos autoritários de Chávez e Maduro, infelizmente, recaem na população. Os imigrantes com os quais conversamos no Brasil são unânimes: a Venezuela está insustentável.
Ao avançar mais, na fronteira entre os dois países, a situação é ainda mais alarmante, já que os venezuelanos não param de chegar ao Brasil. Sim, o problema se agravou.
Um dos maiores dramas migratórios do planeta bem ao nosso lado. Cada venezuelano que se arrisca no Brasil é alguém que teve os limites ultrapassados. São pessoas que não suportaram mais a repressão, o desemprego, a fome e a miséria.
Eu, o repórter cinematográfico Leopoldo Moraes e o auxiliar técnico Rodrigo Cesar viemos aqui para que essa realidade não fique restrita apenas a quem a vivencia. Todos precisam saber o que se passa por aqui.
É minha primeira vez em Roraima. Faltava o estado mais ao norte do Brasil na lista dos 23 em que já fiz reportagens nesse país tão vasto.
Vim aqui por um assunto que parece não se esgotar: o drama dos venezuelanos. Sim, ele persiste e é grave.
Nossa produção tem informações de que centenas ainda entram no Brasil via Pacaraima por dia. Queria ver isso de perto. Eles não vêm por acaso. Fogem da fome, da miséria, de perseguições políticas do ditador Maduro.
Na jornada, deixam para trás praticamente tudo — só não a esperança de se reconstruírem como indivíduos, como famílias, como cidadãos e, claro, ter a chance de recuperar o país de origem que há anos está preso nas mãos de um único grupo. Hoje, cerca de 500 venezuelanos chegam todos os dias na fronteira.
Já no primeiro dia, eu encontrei um casal de venezuelanos. Eles estão no Brasil há cinco anos. Baldino Centeno trocou a vida no campo na Venezuela pelo Brasil. Indígena de 40 anos, veio sozinho em 2017 e depois trouxe a mulher. Aqui, está com os filhos num abrigo que dá morada a mil indígenas.
Ele ainda vive de bicos, não tem trabalho formal. Mas garante que a vida aqui é melhor do que a de lá.
A praça ao lado da rodoviária de Boa Vista é um ponto de encontro de imigrantes venezuelanos. Eles ainda estão nas calçadas à espera de parentes, amigos e conhecidos. O movimento já foi maior, mas ainda impressiona quem vê a cena.
Acomodados sob a sombra as árvores, eles procuram gastar o tempo com um pouco mais de ar fresco, pois a temperatura na capital de Roraima passa facilmente dos 35 graus. E o clima na região amazônica é abafado. Nessas rodas, naturalmente, o idioma é o espanhol.
Faz pouco mais de um mês que Alberto Falcon frequenta esse local. Durante a noite, o analista de sistemas de 40 anos dorme num dos abrigos da capital destinados aos imigrantes. Mas a vontade de conseguir um trabalho temporário, um bico, o põe nas ruas de Boa Vista, com muito sol forte, atrás de algo. Não tem sido fácil.
Mesmo assim, Alberto garante, essa situação é melhor que a vida que tinha na Venezuela. Ele diz: “Aqui está muito difícil arrumar emprego. Mas consigo algo para comer e sobreviver com a família”.
Alberto está prestes a deixar Roraima para trabalhar em Mato Grosso do Sul. Tem sido assim com muitos outros. O mercado de trabalho local não consegue absorver os milhares de migrantes que chegam há anos do país vizinho. “A minha intenção é ganhar algum dinheiro aqui no Brasil e poder ajudar ou trazer a minha família que ficou na Venezuela.”
Na Operação Acolhida, organizada pelo governo brasileiro, é que essas pessoas conseguem, além de serem recebidas com abrigo, comida, saúde e visto brasileiro, um encaminhamento para que se estabeleçam em outras regiões do país.
Desde 2018, quando os trabalhos tiveram início, até setembro de 2022, 84.463 venezuelanos foram atendidos, segundo o Ministério da Cidadania. Na prática, são pessoas que foram realocadas para outros estados. Santa Catarina é o que mais recebeu: foram 16.140 imigrantes. Depois vem o Paraná, com 14.640, e o Rio Grande do Sul, com 12.805. Aí aparece São Paulo, com 10.978.
A maioria desses imigrantes, 89%, viaja em grupos familiares. Mesmo assim, 11% encaram a saída da Venezuela sozinhos. Muitos vêm apenas com a roupa do corpo ou, no máximo, uma bolsa pequena.
É uma viagem arriscada, em que eles estão sujeitos a diversas situações. Alguns, como Alberto, conseguem caronas, pegam um ônibus para um destino mais curto. Mas uma parte ainda se desloca a pé, cruza rios com água na altura do peito, caminha à noite, dormindo, quando o corpo simplesmente não aguenta mais. Tudo para sair da Venezuela do ditador Nicolás Maduro, comandante de esquerda que essas pessoas afirmam não se importar com o povo.
Alberto, que em breve vai morar em Campo Grande, ainda não sabe direito como será a vida no Centro-Oeste brasileiro. Mas a confiança que o trouxe até aqui é o que o move para a frente. Ele quer apenas ter uma vida digna para a família, algo que sua terra natal não tem conseguido proporcionar há mais de duas décadas.
Veja os registros feitos pela nossa equipe:
Pacaraima: são dois idiomas que interagem. O espanhol e o português aparecem não só na fala fluente de brasileiros mas também nas placas de comércio da cidade de 20 mil habitantes. A proximidade com a Venezuela marca hábitos alimentares de Pacaraima, rostos e o jeito de viver.
A cidade mais ao norte do estado de Roraima saiu do anonimato para o Brasil desde que o país passou a ter noção de que esta parte da fronteira tinha virado entrada para milhares de venezuelanos que fogem de um país marcado pelo desemprego, pela inflação nas alturas, pela fome, pela miséria e também pela forte repressão aos opositores. Não é difícil ouvir: “A Venezuela está destruída”. Talvez a única chance.
Chegar ao Brasil já é uma vitória para muitos. A viagem no país vizinho é mais difícil conforme a situação financeira do migrante. Quem tem algum dinheiro costuma vir de ônibus, carona. Mas quem já sai sem nada, e são muitos assim, só tem como opção deixar a Venezuela a pé. E isso vale para jovens, adultos, famílias com crianças pequenas, idosos.
Otulio Pacheco, vigilante de 53 anos, entrou no Brasil apenas com a vontade indescritível de recomeçar. “Ninguna plata en el bolsillo”, ou seja, sem dinheiro. Pelo tom da conversa, ele sabe que aqui tem que dar certo. Otulio, que veio com mulher, filha e dois netos, aceita qualquer trabalho.
Venezuela: os mais velhos contam que houve tempos de glória. E eles prosperaram juntamente com os país. No exterior, contam, eram tratados com distinção. Mas, desde a empreitada socialista comandada por Hugo Chávez, que governou o país de 1999 a 2013, a situação tem mudado drasticamente. E na Venezuela do sucessor, Nicolás Maduro, os tempos são ainda mais sombrios.
Dados do FMI mostram que neste ano a inflação deve fechar em 500%. Em 2021, o país, ainda segundo o Fundo Monetário Internacional, ultrapassou o Haiti num quesito extremamente difícil: a pobreza. Com isso, a Venezuela passou a ser o mais pobre das Américas. O PIB, em dez anos, ficou assustadoramente 81,8% menor.
O reflexo, na prática, é uma população que luta pela sobrevivência. A Anistia Internacional afirma que entre 2015 e 2021 mais de 6 milhões de venezuelanos deixaram o país. É um dos maiores dramas migratórios do planeta.
E o Brasil? Desde que a situação se complicou e os venezuelanos passaram a vir em massa para cá, o Brasil tem feito a Operação Acolhida. A iniciativa do governo federal existe desde 2018 e é coordenada pelas Forças Armadas em parceria com agências da ONU. Organizações nacionais e internacionais e o setor privado também integram a linha de frente, que tenta amenizar o sofrimento de quem troca a Venezuela pelo Brasil.
Nesses anos todos, foram realizados cerca de 2,5 milhões de atendimentos. A interiorização — que é o deslocamento para outras regiões do país com perspectiva de vagas de emprego e reencontros familiares, por exemplo — já passa dos 84 mil registros.
Aqui os venezuelanos também ficam alojados em abrigos, onde recebem três refeições diárias. Antes disso, tiveram acesso a vacinas e um suporte para regularizar sua situação migratória, o que permite que circulem legalmente.
O que eles querem? Não muito: lutam para reencontrar a dignidade que ficou perdida nestas últimas décadas de governo de Chávez e Maduro. Afirmam que estão atrás de um emprego que lhes possibilite, além do sustento por aqui, mandar alguma ajuda para quem ainda está por lá.
E os sonhos? Simon Ortin, perito agrícola de 58 anos, ainda quer ter condições de voltar para seu país. Mas, para que isso aconteça, ele diz que não só o governo tem que mudar, mas todo o sistema que destruiu a Venezuela.
Confira o meu relato sobre a experiência de retratar a crise da Venezuela:
Com as crises econômica e social na Venezuela, cerca de 500 imigrantes cruzam a fronteira do país com o Brasil todos os dias em busca de comida, emprego e ajuda médica.
E, durante todos esses dias, produzimos grandes reportagens para o programa Domingo Espetacular e para o Jornal da Record.
Se você não conseguiu assistir, veja agora: