Brasil soma mais de 200 denúncias de violência contra idosos por dia

Segundo relatório da Ouvidoria de Direitos Humanos, foram 39.333 registros até junho. Violência física e psicológica preocupam

 

Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou 39.333 denúncias de violência contra idosos no país apenas no primeiro semestre deste ano. O número corresponde a 215 por dia e representa mais de 26% do total de relatos recebidos pelo Disque 100, Ligue 180 e aplicativos de Direitos Humanos. O montante pode ser até maior porque, na pandemia, as vítimas estão confinadas por mais tempo com os agressores.

“A partir de 2019, houve uma reformulação no Disque 100 e o aprimoramento das denúncias. Na comparação com 2020, houve aumento, mas isso não significa que todas são verídicas. A dificuldade é encaminhar o relato para o munícipio e ele ter como apurar. Às vezes, quando chega, já foi superada, por isso a importância da criação de uma rede de proteção mais rápida”, afirma Antonio Costa, secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa.

Segundo o relatório da Ouvidoria, em 6 meses, foram registradas 156.777 violações de Direitos Humanos: física, patrimonial, psíquica, de liberdade, entre outras. Em só uma denúncia, pode haver diferentes violações. A psíquica tem mais de 31 mil registros e a de integridade física, outros 30 mil.

Ao longo de 2020, foram quase 88 mil registros de violência contra pessoas idosas, ainda de acordo com a Ouvidoria, ficando atrás apenas de violência contra mulher (105 mil) e contra crianças e adolescentes (95 mil).

A violência psicológica é uma das formas mais comuns e é caracterizada por constrangimento, humilhação, tortura, ameaça ou coação. Ela prejudica a autoestima do idoso e pode desencadear depressão e outros distúrbios nervosos. A quarentena pode até ter agravado o cenário.

“Mais de 80% dos casos acontecem nas residências. A maioria é negligência, pela ausência de uma ação. Na pandemia, o idoso está isolado, não tem apoio da rede social, às vezes não tem alimento adequado e nem atendimento médico. Há um aumento contínuo do número de casos ao longo dos anos”, destaca Simone Fiebrantz Pinto, que é presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia).

Vivendo na pele

Identificar a violência nem sempre é fácil, ainda mais quando ocorre dentro das casas. De acordo com o relatório da Ouvidoria, em quase 21 mil denúncias a violação aconteceu na casa da vítima e também do suspeito.

Os agressores são, na grande maioria, filhos e filhas responsáveis por cuidar dos pais (13.125 registros). Mas há também casos de cônjuges, cuidadores profissionais e familiares.

Maioria dos agressores são filhos ou filhas dos idosos ou netos

REPRODUÇÃO / PIXABAY

Algumas das dicas para identificar que o idoso não está bem são: observar o comportamento dele, se houve mudança na rotina, até mesmo ida à padaria ou passear com o cachorro, se está acuado, isolado, com medo de falar, se desvia o olhar quando está acompanhado por familiares e até a presença de hematomas.

“O primeiro responsável por cuidar do idoso é a família, o segundo, a comunidade e, em terceiro, o estado. Às vezes é um porteiro que nota ou um atendente. O emagrecimento pode indicar que ele está com depressão por conta das agressões sofridas. Quando pensamos em maus-tratos vem a questão física, que é a mais vísivel. Mas a maior é a psicológica”, explica a presidente de gerontologia da SBGG.

A maioria das vítimas na terceira idade são mulheres, mas as idades variam bastante. Das denúncias recebidas, 6.861 eram de pessoas entre 70 e 74 anos.

Gráfico mostra a idade das vítimas denunciadas em relatório da Ouvidoria

Gráfico mostra a idade das vítimas denunciadas em relatório da Ouvidoria

REPRODUÇÃO / ONDH

Uma assistente social, que atua desde 2011 em postos de saúde da zona leste de São Paulo e prefere não ser identificada, contou que já presenciou muitos casos de denúncias, mas faz uma ressalva: “Sempre tem que analisar para conhecer melhor aquela família, o que está nas entrelinhas. É um trabalho em rede, de formiguinha. Todos temos uma história e precisamos ir a fundo”.

Ela se sente triste ao ver os parentes discutindo na frente do idoso. “O que mais dói é quando a gente vê os filhos brigando para não cuidar dos pais, acamados, sem qualquer constrangimento. E o pai ou mãe ouvindo tudo, escorre até lágrima e pensam: ‘sou um fardo'”, revela.

A assistente social coleciona histórias que nem sempre têm final feliz. “Tinha uma idosa que não podia ficar sozinha e a filha disse: ‘por que tenho que cuidar dela se ela nunca cuidou de mim? Faço papel de mãe desde os 7 anos’. Ou uma senhora que tinha um relacionamento com um jovem, que era bancado por ela. Chegou toda machucada no posto e se negou a fazer o B.O”, lembra.

A profissional já foi até ameaçada de morte pelo filho de uma idosa, que era usuário de drogas: “Me olhou e disse ‘vou te matar’, que era para eu tomar cuidado. Eu respondia que não tinha medo dele. Agredia a mãe, tinha medida protetiva, mas, por ser filho, ela o deixava entrar”.

Importância das denúncias

A violência contra os idosos pode ser denunciada pelo Disque 100, em delegacias, pelo 190, ao Ministério Público, SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), aplicativos de Direitos Humanos e pelo WhatsApp (61) 99656-5008. A identidade do denunciante não será revelada.

Segundo a assistente social, as visitas domiciliares dos agentes de saúde são essenciais para o estudo de caso, verificação da rotina, da aparência dos idosos, para entender o motivo das faltas nas consultas, se estão com a higiene em dia, entre outros fatores.

“Por estar mais tempo juntos em casa na pandemia, a violência fica mais nítida. As pessoas têm medo de denunciar, mas confiam nos agentes comunitários de saúde e relatam. Mas, muitas vezes, não querem ir para a delegacia para não prejudicar o filho ou parente”, explica a assistente social.

Nem sempre a violência deixa marcas nos idosos, mas há casos com hematomas

Nem sempre a violência deixa marcas nos idosos, mas há casos com hematomas

REPRODUÇÃO RECORD TV

De acordo com a médica Simone Pinto, na consulta é possível verificar sinais de maus-tratos. “Médicos podem ver se há desnutrição, fraturas, hematomas. Fazer uma avaliação física do cabelo, dentes, notar sinais de negligência. Sempre se direcionar ao idoso e notar se o familiar interfere na fala, qual o tom de voz. Os olhares dos pacientes dão dicas”, alerta.

Para notar os sinais de violência, nem sempre aparentes, é preciso que todos estejam preparados e atentos. Os vizinhos, amigos e a comunidade também fazem parte da rede de proteção. A saúde do idoso é problema de todos.

A violência contra o idoso é crime e a pena pode chegar a um ano de reclusão, além de multa.

Deficiências

Até mesmo a surdez pode ser um gatilho para a violência doméstica. “Estamos todos confinados e o cuidador tem que repetir várias vezes o que diz, isso leva ao esgotamento mental, ao estresse com a repetição. Isso gera xingamentos, exclui o idoso da cena e, às vezes, gera violência física”, ressalta a presidente de gerontologia da SBGG.

Nestes casos, a prótese auditiva é a solução, mas há também dificuldades de adaptação ao aparelho, com necessidade de idas constantes ao fonoaudiólogo. No entanto, uma vez adaptados, os idosos ganham autonomia.

Outros tipos de deficiências, como visual e motora, acarretam em dependência total do idoso ao cuidador familiar ou profissional. “Em quase 50% dos casos os agressores são os filhos e, em 10%, os netos. Em muitos, não há divisão de tarefas e o cuidador fica sobrecarregado. Isso é um fator de risco para a agressão. É preciso cuidar também de quem está cuidando”, diz a especialista.

Mas nem todo idoso tem um temperamento fácil de lidar e aceita ajuda externa. Muitos refletem a violência sofrida, questões do passado e precisam antes fortalecer os vínculos familiares.

“A violência é complexa, multifacetada. Uma senhora relatou que sofria violência por parte da filha, chegou toda roxa. Houve uma investigação do caso e descobrimos que era agressão mútua. Ela batia na filha, que revidava. Em outro caso, a idosa tem dificuldade de andar, mas é geniosa e afasta as pessoas. Sempre que recebe ajuda, pede para a pessoa não ir mais porque não fez as coisas do jeito dela”, conta a assistente social.

Para entender a violência, segundo os especialistas, é preciso investigar a origem do problema. Muitas vezes a agressão é apenas a ponta do iceberg.

Violência patrimonial

A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu, no primeiro semestre, mais de 9,3 mil denúncias de violência patrimonial. Apesar de alto, o número caiu, segundo o secretário nacional Antonio Costa, após parcerias com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), bancos e cartórios para tentar dificultar a transferência de bens e imóveis em nome de idosos.

Ainda assim, algumas situações persistem e se agravaram na pandemia com a dependência financeira das famílias em relação às aposentadorias.

Idosos sustentam as famílias com aposentadoria

REPRODUÇÃO / AGÊNCIA BRASIL

“Em muitos municípios quem está sustentando as famílias são os idosos, com as aposentadorias. Eles também cuidam dos netos para que os pais procurem empregos. Viraram sustentadores das famílias”, ressalta o secretário de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa.

Mas cada situação deve ser analisada. “Se apropriam das aposentadorias e começa a faltar remédios para preservar a saúde do idoso. Mas o abuso financeiro é gerado pela questão social da família, que está desempregada. Organizar a questão social pode até diminuir a violência”, relata a médica Simone Pinto.

A crise econômica leva parentes a fazer empréstimos em nome dos aposentados, vender imóveis, confiscar joias e isso ocorre em diferentes classes sociais.

De acordo com a assistente social, são comuns relatos de idosos que não negam dinheiro aos parentes. “Pegam o cartão do banco sem autorização, fazem empréstimos e até viagens. Isso provoca picos de hipertensão nos idosos. Ficam preocupados, choram, mas dizem: ‘meu filho tá apertado ou tudo que ele pede, eu dou'”.

A profissional lembra também de casos de abandono, de filhos que ficam com os imóveis dos idosos, que acabam sendo levados para casas de repouso ou asilos.

Pacto Nacional

Para apurar com mais rapidez as denúncias de violência contra a terceira idade recebidas pelo governo federal, este ano foi criado o Pacto Nacional de Implementação da Política de Direitos da Pessoa Idosa. Até o momento, 18 estados aderiram à iniciativa.

“O objetivo é criar duas redes: de cuidado e saúde e de proteção com a participação das Polícias Civil e Militar, CRAS, CREAS, Defensoria Pública e Ministério Público. O que falta é a organização da rede porque todos municípios já têm os órgãos, com isso o custo de implantação é zero”, afirma o secretário nacional.

Segundo Antonio Costa, apenas cerca de 1.900 dos 5.568 munícipios do país têm conselhos municipais de idosos, o que dificulta a apuração de denúncias. Muitos dos já existentes precisam ser revitalizados. Para preparar as cidades, são feitos processos de capacitação de gestores e construção da rede de cuidados para combater a violência.

“Hoje ficam jogando de um órgão para outro. Já a rede gera apuração imediata. Só vamos conseguir definir se há subnotificação a partir do momento que a denúncia é, de fato, apurada. Não tem um parâmetro, nem mesmo de quantas denúncias são verídicas”, avalia.

Com inversão da pirâmide etária, idosos serão em número maior do que crianças

Com inversão da pirâmide etária, idosos serão em número maior do que crianças

REPRODUÇÃO

Envelhecimento populacional

Um levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que o Brasil tem hoje mais de 213 milhões de habitantes, sendo 51% mulheres. Cerca de 17% da população tem mais que 60 anos. Em estados como o Rio Grande do Sul, já há menos crianças de 0 a 14 anos do que idosos.

Em 2050, a chamada pirâmide etária estará diferente com o envelhecimento da população. Pessoas acima de 65 anos serão quase 22% do total. A expectativa média de vida hoje no país, segundo o IBGE, é de 77 anos, mas será de 80,5 anos em 2050.

“A expectativa de vida está aumentando e temos que ter políticas públicas de Estado para um envelhecimento tranquilo e com qualidade. Se os municípios não se organizarem, fica difícil para a União atuar. Outro grande desafio é a aposentadoria e a preocupação com a empregabilidade”, justifica o secretário.

A força de trabalho jovem tende a diminuir e será preciso repensar o papel do idoso na sociedade em algumas décadas, com a criação de oportunidades de emprego em empresas e indústrias a este profissional que tem mais experiência.

“Tem que haver um plano nacional, o que vai ajudar a diminuir a violência com o idoso  trabalhando, em plena atividade”, conclui.

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