Epidemia de homicídios: o luto das mães que perderam os filhos no CE

Em 2020, foram registradas mais de 12 mortes de adolescentes por semana no Ceará

 

Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, sempre quis ser vaqueiro. Entretanto, o sonho acabou sendo interrompido pela violência policial. Em 1º de julho de 2020, um tiro disparado por agentes do Comando Tático Rural (Cotar) acertou o garoto enquanto ele dormia na casa da tia, em Chorozinho (CE), cidade a de 70 km de Fortaleza.

Os parentes acolheram o garoto naquela semana porque moravam perto de uma unidade de saúde e ele estava com uma consulta agendada. Mizael havia ganhado o seu primeiro cavalo há pouco tempo e, de tanto cavalgar, desenvolveu uma assadura entre as pernas que acabou infeccionando.

Foto: @galbanogueira
Leidiane Rodrigues Fernandes encontrou no grupo Mães da Periferia o apoio para seguir em frente

Durante a viagem, Mizael recebeu um novo celular de presente da família. Mas ele só teve tempo de tirar uma foto no aparelho. A imagem virou um totem para a mãe Leidiane Rodrigues Fernandes. “Esse último retrato é o que me mantém no mundo — de onde ele foi arrancado há quase 10 meses”, disse.

“Eu perdi meu lugar, não tenho para onde ir. No Ano Novo, tentei tirar a minha vida. Me envenenei. Não tenho razão para festa. Não tenho vontade para a nada”, desabafa a mãe enlutada.

Os policiais Enemias Barros da Silva e Luiz Antônio de Oliveira Jucá estavam presentes no dia da morte de Mizael.Os dois agentes alegam que o menino estava armado e reagiu contra eles. O garoto morreu com um tiro no peito. A perícia não encontrou nada que ligasse o garoto à suposta arma apresentada pelos policiais.

A violência que impactou a vida de Leidiane também atingiu centenas de famílias no Ceará. Em cinco anos, o estado nordestino registrou um aumento de 439% de mortes causadas pela polícia, de acordo com o Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa.

Segundo o Comitê, a polícia cearense matou pelo menos 903 pessoas entre janeiro de 2013 e junho de 2020. O maior número foi registrado em 2018, com 221 óbitos, o que representa um pouco mais de 18 mortes por mês.

Em 2020, foram contabilizadas 143 mortes por intervenção policial, 5,5 % a mais que em 2019, quando ocorreram 136. Isso significa uma média mensal de quase 12 pessoas assassinadas por policiais no Ceará. É o terceiro ano com mais vítimas letais da violência institucional desde 2013, atrás apenas de 2018 e dos 161 óbitos registrados em 2017, aponta um relatório do Comitê.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, o Ceará apresenta o segundo maior crescimento da letalidade policial do Nordeste e o sétimo do Brasil. O crescimento em 2018 foi de 39%, ficando atrás apenas de Sergipe, que apresentou um crescimento de 60,7%.

Em termos comparativos, no Brasil os estados que apresentaram maior crescimento foram Roraima (183,3%), Tocantins (99,4%), Mato Grosso (74%), Pará (72,9%), Sergipe (60,7%), Goiás (57,1%), Ceará (39%) e Rio de Janeiro (32,6%).

A violência policial também atingiu a família de Neusa Fernandes. Ela acredita que seu filho, Wesley Miguel Fernandes Muniz, de 16 anos, foi executado pela polícia cearense no dia 22 de janeiro de 2019.

Wesley estava em um sítio com os amigos, em Quixadá, cidade a cerca de 170 km de Fortaleza. De madrugada, a Cotar invadiu o local e duas pessoas acabaram mortas — um adolescente e um jovem de 20 anos

Foto: @galbanogueira
Neusa Fernandes acredita que o filho de 16 anos foi executado pela polícia

“Torturam o meu filho, botaram um saco de água na cabeça dele. Ele ficou com o rosto cheio de hematomas. Primeiro, deram os tiros e, depois que ele caiu deitado de bruços, os policiais colocaram uma arma na mão dele. Uma testemunha contou que o policial perguntou com qual mão meu filho escrevia e, como ele era canhoto, posicionaram a revolver na mão esquerda”, conta Neusa.

A polícia afirma que Wesley e os quatro jovens estavam no sítio para planejar homicídios e ações criminosas contra prédios públicos, veículos e propriedades privadas. Neusa alega que o filho é inocente.

“Meu filho não tinha nada que desabonasse a conduta dele. Nada na justiça. Ele só tinha 16 anos e inventaram que meu filho era muito perigoso e de facção. São bandidos fardados matando nossos filhos. É muito difícil. Os pobres e pretos das periferias estão condenados à morte”, diz.

O deputado estadual e presidente do Comitê pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Assembleia Legislativa do Ceará, Renato Roseno (PSol), explica que o Ceará aposta em três frentes de atuação para tentar mudar esse cenário: prevenção, formação e controle social.

De acordo com Roseno, a formação de agentes de segurança precisa ser permanente para evitar que o “currículo invisível, ou seja o currículo que está fora das salas de aula, se institua como permanente” e incorra em atos violentos nas ações policiais.

Para garantir a prevenção desse tipo de crime, o deputado enfatiza que é necessário maior investimento em cuidados psicossociais dos servidores. “Alto índice de adoecimento mental acaba resultando em violência contra si e contra outros”, afirma.

O deputado acredita ainda que é necessário fortalecer a capacidade de investigação e responsabilização dos policiais que cometem abusos. “Para isso, é importante ter canais mais abertos e respostas exemplares”, diz. Segundo Roseno, o controle social através do Ministério Público e da sociedade por meio de suas entidades representativas é de extrema importância.

“A sociedade precisa e quer demandar uma política de segurança mais eficiente. Mas o agente da lei não pode – ele próprio – ser o sujeito que viola a lei. Quando o estado não cumpre as regras, essa violência é socialmente mais grave, pois atinge o cerne no pacto constitucional”, explica Roseno.

O professor do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará Luiz Fábio Paiva explica que a violência policial não é culpa daqueles que ocupam a posição subalterna dentro da hierarquia da estrutura da Polícia Militar, como um soldado ou sargento. “Esse é um problema institucional: o Estado não tem controle da dinâmica de trabalho da PM”, acredita o especialista.

Foto: @galbanogueira
Roseno preside Comitê pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Assembleia Legislativa do Ceará

O pesquisador afirma ainda que por uma questão cultural as forças policiais se sentem extremamente à vontade para agirem com violência. “Se criou um imaginário de que a polícia deve enfrentar criminosos, ir para rua e trocar tiros. É como se a gente vivesse dentro de um mundo no qual matar pessoas é aceitável em nome do combate ao crime. Mas ilegalidades acontecem independentemente dessas ações”.

Para Paiva, essa dinâmica se reflete na realidade atual. “A polícia brasileira é extremamente violenta e mata mais do que outras corporações de segurança do mundo inteiro”, explica.

Segundo o professor, estudos mostram que nos últimos anos houve aumento da violência policial e da expansão das facções criminosas. “A política de atuação da polícia brasileira não resulta em uma sociedade mais segura, ela não cumpre a sua função social. Pelo contrário, alimenta a violência, principalmente contra negros”.

O Ceará é um dos estados que não incluem a violência policial na base de dados dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI). Os casos, em sua maioria, são encarados como excludente de ilicitude, em que os policiais agiram em legítima defesa.

“Nós precisamos refletir sobre isso. Nessas ocorrências, a violência policial sempre se apresenta como ato de resistência, onde os policiais são recebidos a tiros. Quando a gente vai conversar com os moradores da região, não é isso que a população local narra”, afirma Paiva.

Na base de dados da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS), esses casos são computados como Mortes por Intervenção Policial. Ao contrário dos CVLI, os óbitos provocados por policiais não estão disponíveis ao público no site da instituição.

As informações sobre os óbitos por intervenção policial acesso são do Comitê de Prevenção e Combate à Violência. A reportagem entrou em contato com a SSPDS para pedir o número de mortes de adolescentes por ação policial, de 2013 a 2020, mas até a publicação da matéria os dados não foram disponibilizados.

Organizações da sociedade civil disseram à equipe do portal que a SSPDS não costuma liberar os dados referentes à morte de adolescentes por intervenção policial. O órgão foi questionado quanto a isso, mas não respondeu até a publicação deste material. O espaço segue aberto.

A SSPDS informou, entretanto, que trata todas as mortes decorrentes de intervenção policial com seriedade e transparência. As ocorrências são apuradas com instauração de inquérito policial pela Polícia Civil e submetidas à apreciação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).

O órgão disse ainda que o estado possui também a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), uma secretaria autônoma e isenta, com a função de investigar e garantir o devido processo legal e proporcionar a segurança jurídica na avaliação da conduta e correição preventiva de servidores.

Para lidar com o luto e buscar justiça devido o assassinato de seus filhos pela policia, mulheres cearenses criaram o movimento Mães da Periferia. Atualmente, ele é composto por 12 mulheres que lutam contra a violência policial no estado do Ceará. Neusa e Leidiane fazem parte dele.

Foi no grupo que Leidiane encontrou apoio quando tentou se envenenar. As mulheres também ajudam a mãe de Mizael a lidar com as crises de pânico que adquiriu após o assassinato de filho.

Desde que Mizael morreu, ela não consegue nem ver uma viatura. “É uma mistura de medo, ódio e vontade de destruir o carro da polícia. Eu não saio de casa usando a camiseta com a foto do meu filho porque os policiais me encaram. Eles ficam dizendo que eu sou louca, zombam de mim”, conta.

Neusa afirma ter encontrado no grupo a força para lutar pela memória do filho. “Para uma mãe a dor é contínua, mas a gente tem que seguir e lutar para ver se a gente consegue justiça. Enquanto eu tiver vida, eu vou correr atrás da justiça. O Brasil inteiro vai ouvir meu grito por justiça”, afirma.

Foto: @galbanogueiraFoto: @galbanogueira

Uma das mães que está à frente do grupo é Edna Viana. Ela perdeu o filho na Chacina do Curió, que ocorreu em 2015, quando morreram 11 pessoas. “A gente tem uma bandeira com o rosto dos filhos de cada mulher que faz parte do movimento. Nós carregamos ela na luta para reivindicar justiça, para que o Estado pague por esses crimes”, afirma.

Desde de 2016, o coletivo se faz presente nas ruas e em escolas. “A gente queria entrar nas universidades para ver a colação de grau dos nossos filhos, não para falar para os estudantes as atrocidades, as maldades e a perversidade da polícia militar do estado. E do próprio estado que não fez nada que negou ajuda às mães e até hoje nega”, diz Edna.

A psicóloga Márcia Noleto, coordenadora da Clínica e Cursos em Fenomenologia, o C-Fen, que presta atendimento particular e social a pessoas enlutadas, explica que o Manual Diagnóstico de Doenças Mentais coloca o luto por suicídio e homicídio em um local diferenciado, e o classifica como luto traumático.

“É um luto que tem todas as condições para se complicar. Essa mulher perde o sentido, é uma quebra de todos os paradigmas. É tirado dela tudo aquilo que a fazia se sentir segura para viver: como acordar de manhã, fazer suas compras e levar seu filho na escola. Ela passa a não ter mais confiança nesse mundo”, explica Noleto.

Noleto ainda explica que essa “desarticulação com o mundo”, como vivenciado por Leidiane, pode causar diversos transtornos. “Elas ficam com medo de estarem perdendo o equilíbrio ou enlouquecendo. Muitas têm medo de sair na rua, esquecem coisas, preferem ficar isoladas, separam dos companheiros por não ter mais condições de sustentar a relação. Várias coisas vão acontecendo após esse momento traumático”.

A psicóloga afirma que diversos grupos de apoio de mães enlutadas estão surgindo no Brasil, como uma forma de resistência política e apoio emocional. “Com outras mães, elas conseguem falar e principalmente repetir quantas vezes elas quiserem sobre as mesmas sensações e sentimentos. As mulheres se amparam. Elas passam a se ajudar mutuamente até em alguns processos na justiça. Elas se reunem, por exemplo, na porta de tribunais de justiça com faixas e camisetas de movimentos”, exemplifica Noleto.

O índice de homicídios contra adolescentes — faixa etária de 10 a 19 anos — no estado também surpreende os especialistas. Nos primeiros três meses de 2021, 805 pessoas foram vítimas de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs), no Ceará. De acordo com Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), 112 delas eram crianças e adolescentes, em sua maioria negros e moradores de periferia. O número é quase três vezes maior do que pessoas de 0 a 19 anos que morreram em decorrência da Covid-19, apontou o jornal Diário do Nordeste.

Em 2020, 677 adolescentes foram vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais, que abrange homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Esse número de óbitos corresponde a quase o dobro de assassinatos de adolescentes em 2019, ano em que foram registrados 355 homicídios. Isso corresponde a mais de 12 adolescentes mortos por semana no ano passado, de acordo com o relatório do Comitê de Prevenção e Combate à Violência.

A capital Fortaleza concentra 60,5% desses homicídios. A diferença entre os anos 2019 e 2020 é de 88,1%. O que corresponde a um salto de 118 para 222 casos registrados, de um ano para o outro.

Roseno explica que o Comitê tem mantido uma base atualizada de produção de informações sobre evidências do porque tantos adolescentes morrem. “Temos 12 grandes evidências. Posso destacar algumas: territórios urbanos muito degradados com altos índices de violência, evasão escolar, presença de ameaças”, afirma.

Para ele, essas mortes são previsíveis, portanto, poderiam ser previnidas. “Os poderes executivos precisam incorporar o modelo preventivo. Isso precisa estar em planos específicos, multissetoriais, com orçamento, coordenação e meta. Não temos isso em larga escala”, explica.

Uma explicação para a explosão de violência, segundo Roseno, é que “as antigas gangues locais passaram a ter relações com organizações armadas nacionais há 15 anos aproximadamente. Houve aumento da capilaridade e da capacidade de recrutamento e de controle dos territórios”.

Isso, sem um trabalho preventivo, explica o deputado, acaba explodindo no território.

“A capacidade de recrutamento no território está vinculada à ausência de políticas preventivas. Porque esse garoto entra na organização? Porque não houve consolidação de outras oportunidades de vida”, afirma.

Outra explicação apontada pelo relatório do Comitê, foi a greve dos policiais militares, em fevereiro de 2020. Os agentes de segurança paralisaram suas atividades por 13 dias. Das 321 pessoas assassinadas no estado, neste período, 66 delas eram adolescentes (19%). A cada dia, em média, 24 pessoas eram vítimas de CLVI, cinco delas eram meninos e meninas de 10 a 19 anos.

Paiva ainda aponta outra situação: “A polícia entra nos territórios dominados por facções já com a ideia de que esses adolescentes integram esses grupos. E tem se utilizado dessa prerrogativa de enfrentar esses grupos para causar esse morticínio. E fazem isso de uma maneira muito tranquila, porque não há resistência nenhuma”.

A SSPDS informou que é “realizado um serviço de assistência a crianças e adolescentes inseridos dentro de comunidades que apresentam índices elevados de violência. Dentre as ações, destaca-se a atuação do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), do Grupo de Segurança Comunitária (GSC) e do Grupo de Segurança Escolar (GSE), que são serviços estratégicos diferenciados criados para um acompanhamento mais aproximado com as comunidades, principalmente as mais vulneráveis”.

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