Perigo em casa: sem escola, crianças ficam mais reféns da violência

Governo e médicos alertam para o aumento de agressões a crianças e adolescentes na pandemia. Para o secretário da pasta, participação social de professores ajuda a combater a subnotificação de casos

 

A morte de uma criança por agressão dentro de casa é o estopim de uma vida baseada em torturas físicas e psicológicas. Quando não mata, como no caso Henry Borel, ainda sob investigação, fere e deixa consequências. A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que mantém o Disque 100, contabilizou 95.252 denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes em 2020. Apesar de, em 2019, os balanços do ano indicarem números inferiores, na casa de 86 mil, o aumento é relativo, já que, segundo a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), houve mudança na metodologia de contabilização e, por isso, os números não são comparáveis.

O secretário da pasta, Maurício Cunha, ressalta que “embora saibamos que a violência tem aumentado significativamente para todos os grupos vulneráveis” em meio à pandemia do novo coronavírus, os registros de violência não subiram no mesmo ritmo. “Isso nos mostra que a participação social, por exemplo de professores, que olhavam para nossas crianças com olhar cuidadoso, protetor, não está fazendo isso nesse período. Nossas crianças e adolescentes estão sofrendo sozinhos”, admite. Ainda que presentes por meio de aulas remotas, os educadores acabam mantendo uma comunicação mais limitada com os alunos. Cerca de 75,9% dos casos de abuso ocorrem no ambiente domiciliar e, em 40% dos casos, são cometidos pelos próprios pais ou padrastos, como revela o MMFDH. Neste cenário, o papel dos profissionais de saúde é estratégico para identificar crianças nessa situação de vulnerabilidade.

Mesmo sendo um sofrimento, em 76% dos casos, oculto pelo ambiente doméstico, a média de notificações desse tipo de violência pelos serviços de saúde é de 243 casos diários, segundo dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), com base no fechamento de 2019. Em 2010, a média era 66, um aumento de quase quatro vezes em 10 anos.

Pelo levantamento feito pelo Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), com o apoio da equipe da 360° CI e dados do Sinan, 88.572 notificações de agressões ocorreram em 2019, um incremento de quase 270% na comparação com 2010, ano em que se iniciaram os registros na plataforma, contabilizando 24.040 casos, uma média de 66 por dia. Ao analisar a série histórica nos últimos 10 anos, o volume de agressões chega a 629.526 registros. E o aumento tem diferentes justificativas.

“A violência tem aumentado por se perpetuar entre as gerações, sendo progressiva, se não interrompida. Mas, também, os médicos, profissionais de saúde, da educação estão mais bem instruídos para identificar as situações suspeitas, de forma muito clara. Consideramos que para cada registro de violência, temos 20 que não chegam. Por falta de diagnóstico, por não serem levados à saúde”, conta a pediatra Luci Yara Pfeiffer, membro do Departamento Científico de Segurança da SBP e única representante da América Latina no grupo de trabalho focado em desenvolvimento familiar ligado ao Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU).

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(foto: Editoria de ilustração)

Doença crônica

No caso de Henry Borel, 4 anos, antes de o menino ter a vida ceifada, ele deu sinais das violências sofridas dentro de casa. A rede de apoio, contudo, não chegou a tempo para impedir o crime bárbaro. A criança fez uma vídeochamada para a mãe, Monique Medeiros, contando sobre as agressões feitas pelo padrasto, o vereador Jairo Souza Santo Júnior, conhecido como Dr. Jairinho.

Ao todo, 103.149 crianças e adolescentes foram assassinados nesse contexto de agressão pelo levantamento da SBP. E os episódios, como mostra o caso Henry, não se restringem a uma parcela da sociedade financeiramente mais vulnerável. “A violência acontece em todas as classes sociais, culturas, etnias. Não depende de escolaridade. A violência é uma doença passada de geração a geração. Pais que maltratam seus filhos e que foram maltratados pelos pais. E, assim, vemos uma cascata de uma doença crônica cada vez mais grave”, ressalta Pfeiffer.

Na faixa etária de um a quatro anos, o Sinan contabilizou 51,3 mil registros de agressões. Pelos dados, no entanto, é possível observar que, além de ocorrerem nas diferentes camadas da sociedade, também atingem todas as faixas etárias. Em bebês menores de um ano, foram quase 25 mil casos notificados nas unidades de saúde das redes pública e privada.

As crianças, sobretudo as mais novas, por não conseguirem expor a própria situação, contam com o importante papel dos profissionais de saúde na identificação das violências que, atualmente, têm sido o principal canal de identificação. A presidente da SBP, Luciana Rodrigues Silva, relata que “diariamente, os pediatras se deparam em seus consultórios com os mais diversos desrespeitos e afrontas à integridade física, psicológica e moral das crianças e adolescentes”.

A pediatra Luci Pfeiffer destaca a importância de uma rede de assistência integrada, capaz de identificar, prevenir e remediar casos iminentes de agressões ou violências de fato. “Precisamos fortalecer essa rede de ajuda. Começando pela prevenção, vendo sinais de alerta, desde a gestação, com sinais de falta de vínculo, a ensinar crianças o que é um desenvolvimento normal, para que elas possam entender o que é violência, não reproduzir, conseguir denunciar”.

Um segundo passo detalhado pela médica é reconhecer e denunciar, ainda que seja uma suspeita. “Mesmo as pequenas violências são danosas”. Ela destaca, ainda, ser necessário “separar autores ou pessoas do convívio da criança que seriam ainda tratáveis e os que são cruéis, perversos por sua estrutura de personalidade”. “Mas, com tudo isso feito, é necessário um estado forte atuando para prestar assistência com dignidade à criança, repreender os responsáveis pela violência. Ainda há muito caminho a percorrer, estratégias para fortalecer”.

Ações

Em 2020, o governo federal destinou R$ 78,2 milhões para a implementação ou fortalecimento de políticas públicas para crianças e adolescentes. Deste valor, R$ 75 milhões foram utilizados, execução de 96% da verba. Entre as ações estão o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), além da equipagem de conselhos tutelares.

Como estratégia para melhorar a assistência infanto-juvenil, sobretudo no contexto de pandemia, a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente pretende lançar o aplicativo Direitos Humanos Kids e Teen. “Será um canal direcionado para que as próprias crianças e adolescentes façam denúncias de violência sofridas em uma linguagem muito lúdica, adaptada a eles e condizente com a capacidade de compreender e relatar aquilo que está acontecendo”, explica o secretário Maurício Cunha.

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