Crise no setor de restaurantes quebra empresas e derruba vagas

Mais de 1 milhão de pessoas perderam o emprego. E as histórias por trás dos números tornam as estatíticas ainda mais dramáticas

 

Antonio José Moreira Neto, 53 anos, o Toninho, deixou Mombaça (CE) aos 18 para tentar a vida em São Paulo. Começou lavando pratos em um restaurante, depois foi promovido para a copa e, finalmente, chegou ao salão, onde ficou por mais de 30 anos. O início da pandemia de covid-19 marcou o fim da trajetória de Toninho como garçom: em março de 2020, ele foi demitido de uma tradicional cantina italiana paulistana.

Toninho percebeu a gravidade da crise no mês seguinte, quando a mulher, a cozinheira Patrícia Alves Delfino, 48 anos, também perdeu o emprego. Logo depois, foi a vez da filha de 26 anos. Com o setor de bares e restaurantes fechado por causa das restrições, a família passou a sobreviver com o dinheiro do seguro-desemprego. Em setembro, o casal decidiu montar um pequeno restaurante que vende marmitas na região central.

Garçom em um hotel em Embu das Artes, na Grande SP, Wilson de Oliveira Neves, 55 anos, também foi demitido no começo da pandemia. O empregador decretou falência e Wilson sequer conseguiu receber todas as verbas rescisórias. Atualmente, vive de pequenos bicos na construção civil para garantir alguma renda.

O cozinheiro Gonçalo Pereira da Silva Filho, 48 anos, não chegou a tomar conhecimento da pandemia. Meses antes, em uma queda acidental, sofreu traumatismo craniano e a consequência foram danos cerebrais irreversíveis.

Afastado do trabalho, recebeu auxílio-doença por algum tempo, mas em sua última avaliação, em janeiro, mesmo sem conseguir se comunicar com clareza, foi constatado que ele estava apto a retomar suas atividades. Nem que ele quisesse, poderia: àquela altura, o dono do restaurante em que ele trabalhava, na Vila Madalena, havia morrido de covid-19 e o estabelecimento fechou as portas.

Retrato do desemprego

Comoventes e emblemáticas, as histórias de Toninho, Patrícia, Wilson e Gonçalo ajudam a compor o retrato da assustadora estatística da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel): desde o início da pandemia de covid, mais de 1 milhão de trabalhadores do segmento perderam seus empregos no Brasil. Parte desse número é resultado do fechamento de estabelecimentos. “Mais de 30% dos bares e restaurantes, o equivalente a 300 mil negócios, foram fechados em 2020. O setor foi completamente destruído de norte a sul do país”, afirma Paulo Solmucci, presidente da Abrasel.

E a situação, neste momento, segue crítica. “Cerca de 80% das empresas do setor não têm dinheiro para pagar integralmente a folha do dia 5 de abril”, diz Solmucci. São Paulo e Rio de Janeiro, conta ele, foram mais duramente castigados. “São estados com grandes corporações e a implementação do home office acabou com a demanda de almoço e happy hour dos trabalhadores”, conta Solmucci.

Estimativa da Abrasel-SP aponta que o setor continuará perdendo no estado, por dia, cerca de 300 estabelecimentos, 1.800 empregos, 600 pequenos empresários e uma contribuição de R$ 45 milhões ao PIB (Produto Interno Bruto), além de R$ 45 milhões de potencial de consumo. Só na capital paulista, 12 mil estabelecimentos fecharam as portas definitivamente – no estado, foram 50 mil.

Apesar de a economia do segmento ter entrado em queda livre, Solmucci acredita que o Brasil vive hoje o pior dos piores momentos e que, a partir daí, a situação tende a melhorar. “Com as atuais medidas restritivas e o ritmo de vacinação, projetamos que a partir de 15 de abril os índices de contaminação por covid devem baixar. Os estabelecimentos devem ser reabertos e, aos poucos, a rotina será retomada.”

Para que isso aconteça, no entanto, o presidente da Abrasel diz ser fundamental haver um esforço coletivo da sociedade, como parcerias com empresas de entrega, por exemplo, e a retomada do Programa de Preservação de Renda e do Emprego (BEm), encerrado em dezembro. “Nossa expectativa é que a MP do BEm, que prorroga o auxílio por mais quatro meses, seja assinada nesta sexta-feira (26)”, disse.

Contrapartidas públicas

Outras contrapartidas do governo também seriam bem-vindas no atual momento, acrescenta Ulisses Ruiz de Gamboa, professor de Economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.

“Além do BEm, que é urgente e necessário, políticas de crédito, parcelamento e descontos em impostos, por exemplo, poderiam evitar uma quebradeira. Aliás, o recente aumento do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) em São Paulo não faz sentido no momento de crise que estamos vivendo”, diz Gamboa.

O economista explica que o setor de bares e restaurantes foi atingido em cheio durante a pandemia porque se caracteriza principalmente pelo atendimento presencial. “Nem todos os estabelecimentos têm estrutura para implantar o delivery ou montar uma pequena frota de motoboys. Esses empresários foram os primeiros a fechar as portas”, afirma.

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Além disso, as medidas de isolamento social implementadas pelo governo, segundo Gamboa, embora necessárias, têm sido erráticas e mal planejadas. “A adoção do feriadaço, por exemplo, parece ter um efeito duvidoso. E de que adianta fechar os restaurantes, mas manter o transporte público funcionando e fechar os olhos para festas clandestinas?”

Assistência aos trabalhadores

Se para os empresários do setor, supostamente mais estruturados para emergências, a situação é de calamidade, o que esperar dos trabalhadores que perderam sua única renda? “A crise se arrasta há um ano e muita gente ainda não conseguiu uma recolocação. Passamos a distribuir cestas básicas aos associados para que eles pudessem ter o mínimo”, conta Rubens Fernandes da Silva, secretário-geral do Sinthoresp (Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Apart Hotéis, Motéis, Flats, Pensões, Hospedarias, Pousadas, Restaurantes, Churrascarias, Cantinas, Pizzarias, Bares, Lanchonetes, Sorveterias, Confeitarias, Docerias, Buffets, Fast-Foods e assemelhados de São Paulo e região).

A entidade também continua oferecendo assistência médica, odontológica e jurídica. “Sabemos que isso não é tudo, mas esses trabalhadores precisam de um olhar especial. Sem perspectivas, muitos estão com o estado emocional totalmente abalado. Alguém tem que estender a mão a eles”, diz. A volta do auxílio emergencial e a campanha nacional de imunização, afirma o sindicalista, constituem a principal esperança desses profissionais no momento.

Marmita nordestina

Toninho e Patrícia, cuja história foi contada no início deste texto, sabem que, mesmo com toda a dificuldade, tiveram alguma sorte. “A gente aperta daqui e dali e consegue sobreviver”, conta o ex-garçom. Acostumado a servir massas italianas e vinhos importados na cantina em que trabalhava, hoje Toninho abastece marmitas com a legítima comida nordestina, com destaque para o baião de dois e a galinha caipira.

“Num dia bom, vendemos de 25 a 30 marmitas”, conta Patrícia. “Mas só o movimento do boteco não paga as contas. Em geral, temos que usar o dinheiro que está guardado para emergências”, assume. Apreensiva, a cozinheira diz não saber até quando essa reserva vai durar. “Tem que ter fé que essa pandemia acabe antes.”

Do salão para o canteiro de obras

Wilson encostou o uniforme branco: 'Tem que se virar para honrar compromissos'

Wilson encostou o uniforme branco: ‘Tem que se virar para honrar compromissos’

ARQUIVO PESSOAL

Wilson, que trocou o avental branco de garçom pela colher de pedreiro e a trena, também não reclama. “A gente tem que se virar para honrar os compromissos”, diz. Ele chegou a fazer bicos em alguns restaurantes, mas afirma que, ultimamente, o que surge são oportunidades em pequenas obras residenciais. “A renda não é a mesma de antes, mas é preciso se adaptar.”

O novo normal exigiu de Wilson promover economias dentro de casa, onde vive com a mulher e a filha. “Cortamos o que foi possível. E já definimos que a prioridade é garantir a alimentação e o pagamento das contas essenciais”, afirma. Voltar a vestir o uniforme branco parece um sonho distante, mas ele não descarta. “Claro que eu voltaria. Mas, no fundo, não importa qual é o ofício, desde que você trabalhe honestamente.”

As lições de Adelina

Gonçalo, Adelina e a filha: nova vida após o acidente

ARQUIVO PESSOAL

Com dificuldades para se expressar, o cozinheiro Gonçalo não pôde dar entrevista. Sua mulher, a diarista Adelina da Silva Carvalho, 46 anos, foi alçada à condição de porta-voz. E cuidadora. E arrimo da família, que conta ainda com a filha do casal, de 15 anos. De uma hora para outra, Adelina virou o alicerce da casa, sem nem saber que tinha forças para isso. “Quando o Gonçalo sofreu o acidente, eu disse à minha filha que a gente tinha que fazer três coisas: eu continuaria trabalhando, ela continuaria estudando e nós duas íamos cuidar dele”, conta. E assim elas têm feito.

Durante a pandemia, a rotina tornou-se especialmente desafiadora. Adelina reveza seu tempo trabalhando em duas casas, administrando a rotina doméstica e cuidando dos interesses do marido. Atualmente, conta com o apoio jurídico do Sinthoresp para tentar reverter a decisão do INSS que determinou a volta do cozinheiro ao trabalho. “Infelizmente, ele não tem mais autonomia para atividades simples do dia a dia, imagine trabalhar”, diz. A ideia é que ele volte a receber o auxílio-doença e, assim, possa contribuir com as despesas da família.

O dia a dia é cansativo, mas Adelina não esmorece. “Se não desisti no começo, não vai ser agora.” Mas ela tem lá suas fraquezas. “Não me canso de lutar. Mas o que dói é a saudade. É olhar para o Gonçalo e saber que nunca mais vou ter meu marido de volta.”

 

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