Com vacina na reta final, cresce preocupação com plano de imunização

Com o progresso das pesquisas, a expectativa sobre a definição de imunizantes seguros e eficazes contra o novo coronavírus é cada vez mais real. Especialistas, contudo, alertam para a necessidade de o país definir uma estratégia abrangente para o combate à pandemia

 

 

O registro de uma vacina eficaz e segura para combater a covid-19 está no centro das atenções do mundo e se torna uma expectativa cada vez mais real. Das candidatas mais promissoras, o Brasil tem contratos de transferência de tecnologia assinados com duas farmacêuticas, ainda que o tema, em relação à iniciativa chinesa, esteja nebuloso devido às interferências políticas. Esta semana, o governo federal reuniu-se com outras cinco empresas a fim de assinar memorando de intenção de compra. O cenário é promissor, mas a discussão em torno da vacina precisa ser aprofundada desde já, alertam especialistas.

Mesmo longe de ser uma solução imediata, o imunizante terá capacidade de mudar o cenário pandêmico e servir como estratégia de saúde pública internacional. É o que defende o pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães. “Dois termos definem essa pandemia: surpresa e complexidade. Não creio que uma vacina seja bala de prata. Mas, dentro do conjunto de medidas que têm sido cogitadas para mitigar a pandemia, certamente a vacina é a principal ferramenta.”

Olhar os exemplos históricos é o que permite a avaliação de Guimarães, feita durante webnário focado no debate das vacinas e as etapas finais de desenvolvimento, promovido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “A vacina foi estratégia fundamental para lidar com parte das doenças epidêmicas causadas por vírus. Febre amarela, poliomielite e sarampo são infecções controladas, não erradicadas por vacinas. A contraprova também está sendo demonstrada. Deficiências na política de imunização contra essas doenças estão fazendo com que elas reapareçam”, disse o pesquisador, para justificar a importância do tema, bem como a elaboração de uma estratégia capaz de acompanhar, a longo prazo, o desenrolar das infecções, mesmo depois de cessada a pandemia.

Nessa necessidade de ter um direcionamento mais amplo do que somente aguardar o registro de uma vacina, há a preocupação da elaboração de um plano de imunização a nível Brasil. “Raramente o Programa Nacional de Imunização (PNI) falhou. Mas, confesso que fico muito preocupado com a falta de transparência que existe no Ministério da Saúde. Para uma campanha nacional, envolvendo, provavelmente, mais de uma vacina, e em duas doses, a logística é solucionável, mas não simples.”

Eixos

Na semana passada, o Ministério da Saúde apresentou os eixos do Plano de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19, que, no entanto, não possui detalhamentos sobre público-alvo, logística de armazenamento e esboço de um cronograma, o que, segundo o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, só será feito após registro de uma vacina. “O Brasil possui o maior e melhor programa público de imunização mundial. A cada ano, distribuímos mais de 300 milhões de doses de vacinas. Portanto, esse ministério tem o compromisso extremamente sério com a população brasileira de só vacinarmos quando houver absoluta certeza de estarmos diante de uma vacina registrada pela Anvisa, com garantia de eficácia e segurança para a população”, disse, durante coletiva.

O grupo sintetizou 10 eixos prioritários para estabelecer como será a vacinação contra a covid. Neles, estão incluídas a identificação dos grupos de maior risco; consideração do perfil da vacina (faixa etária na qual está registrada e que é mais eficaz, esquema de vacinação, dados de segurança, tipo de frasco, duração da vacina após o frasco aberto, condições de armazenamento); além de um monitoramento pós-vacinação, analisando necessidade de se reforçar a dose anualmente e avaliar efeitos colaterais, entre outras análises.

Interesses comerciais

As preocupações em torno do papel do governo federal na condução da crise também foram abordadas pela presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres) e pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Érika Aragão. “Hoje, estamos vendo os estados protagonizarem, inclusive, a própria questão dos estudos clínicos, como é o caso de São Paulo, cuja produção da CoronaVac está sendo articulada diretamente com o estado”, exemplificou, durante o webnário ocorrido na semana passada.

A “desarticulação central do governo”, como definiu a pesquisadora, fez com que o Brasil, mesmo sendo palco essencial para o desenvolvimento de estudos clínicos de fase três, não protagonizasse parcerias. “As duas vacinas que estão em fase final, aguardando registro, não têm contrato com Brasil. E não é por acaso. O país não tem uma estratégia inicial e não foi protagonista em fazer os acordos. Fomos demandantes desses acordos”, afirmou Érika, fazendo referência às candidatas da Pfizer e da Moderna.

Representantes de cinco farmacêuticas assinaram, junto ao Ministério da Saúde, memorando de entendimento não vinculantes para possíveis futuras aquisições. São elas: Pfizer, Janssen, Sputinik, Moderna e Covaxin. Para as tratativas, no entanto, é necessário considerar uma série de premissas, como oferecer segurança, eficácia, possibilitar produção em escala e oferta em tempo oportuno. Além disso, o preço e condições logísticas acessíveis devem ser considerados.

“Não creio que uma vacina seja bala de prata. Mas, dentro do conjunto de medidas que têm sido cogitadas para mitigar a pandemia, certamente a vacina é a principal ferramenta”
Reinaldo Guimarães, pesquisador da UFRJ e vice-presidente da Abrasco

Chinesa e britânica mostram mais viabilidade

 (crédito: Nelson de Almeida/AFP)
crédito: Nelson de Almeida/AFP

Ainda que fechem parcerias com outras farmacêuticas, a avaliação dos especialistas é de que somente a chinesa CoronaVac e a britânica da AstraZeneca com a Universidade de Oxford têm viabilidade de incorporação no Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque, as que largaram na frente possuem a tecnologia de RNA, quando se usa segmentos do material genético do vírus para adaptar o sistema imune no combate à doença. No entanto, essa metodologia exige uma conservação em refrigeradores ajustados na temperatura de -70°C, o que é um desafio logístico que deve encarecer o produto final.

“A gente ainda não conseguiu a bala de prata: a vacina que você pode diluir, que não precisa de cadeira de frios, que seja mais barata e que consiga um acordo. Enfim. Vamos conseguir, mas, para quem?”, questiona Érika Aragão, da UFBA, alertando sobre o jogo de interesses das empresas por trás da busca por soluções. “As empresas são empresas. Estão olhando quanto aumenta e diminui o preço das ações e valor delas de mercado. E haverá uma reconfiguração em relação a poder das farmacêuticas.”

A pesquisadora destaca que a Covax Facility, fundo multilateral para captar vacinas contra a covid-19, ajudará o país nesse sentido, mas que não é possível saber por quanto tempo esse acordo deve durar. “Quanto à propriedade intelectual, não se sabe como será a questão da divisão dos royalties depois. No caso do Brasil, esse acesso será comprometido fortemente pela questão geopolítica e orçamentária. Estamos com orçamento no piso de R$ 123 bilhões e não está previsto no Projeto de Lei Orçamentária (PLO) do ano que vem um recurso adicional para covid, para suplementar esse valor.”

Preços
Outra questão destacada pelos especialistas é a manutenção dos preços das vacinas. Pelas cláusulas, os valores das doses devem ser mantidos até o fim da pandemia, o que, na interpretação de Reinaldo Guimarães, da UFRJ, acende uma luz amarela. “Quando acabar a pandemia, o preço vai mudar, o valor dos royalties vai aumentar. E quem define o fim da pandemia? Fico imaginando se a empresa não poderá, unilateralmente, definir esse prazo para poder aumentar o preço, e não a OMS (Organização Mundial da Saúde). São detalhes que contornam a questão das vacinas e que é importante a gente discutir”, avaliou.

Guimarães acredita que o papel do Instituto Butantan e da Fiocruz, como desenvolvedores e produtores de imunizantes, aliado à expertise do PNI, trazem méritos ao Brasil no atual contexto de crise da saúde mundial, mas a condução politizada, por outro lado, é negativa. “Há enorme guerra geopolítica comercial, que se estabeleceu tanto no campo de medicamentos, quanto, principalmente, no campo das vacinas. Essa politização chegou a atingir o Brasil muito em função da posição que tem o presidente da República quanto a essa pandemia.” Nesse contexto, o pesquisador chamou a atenção para o posicionamento técnico de instituições e agências reguladores que devem ser isentas de ideologia.

Papel regulador
Participante do debate, representando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, defende a necessidade de um corpo técnico regulador isento das questões políticas e focado em procedimentos científicos rigorosos. “O mercado farmacêutico não é um mercado de saúde pública. Tem fins comerciais e visa lucro. Por isso mesmo, é necessário ter uma agência regular que olhe para essas questões de maneira isenta e não politizada, que não seja movida por interesses particulares. É preciso verificar a rastreabilidade, se são dados verídicos, chancelar as alegações e chegar a resultados isentos dos interesses que existem.”

Como agência reguladora, os desafios em meio à uma pandemia é realizar toda essa análise em tempo hábil. Entre as estratégias para “otimizar os estudos clínicos sem abrir mão da segurança e eficácia”, como descreveu Mendes, a Anvisa aprovou a metodologia de estudos adaptativos, permitindo que uma nova fase de testes se inicie enquanto a etapa anterior é validada; reduziu tempos de análises para aprovação e possibilitou o procedimento de submissão continuada, permitindo que as empresas enviem documentos parceladamente visando o registro, em vez de aguardar toda a finalização dos estudos.

Ainda assim, o registro da vacina poderá demorar mais dois meses. Ou seja, nem que hoje o Instituto Butantan ou o Biomanguinhos, da Fiocruz, submetam o dossiê completo nos próximos dias, a Anvisa terá que analisar, com trabalho em diferentes áreas técnicas, todos os detalhes e, levando em conta o prazo, uma liberação só é esperada para fevereiro.
“Isso já no contexto da pandemia. Porque, por lei, nosso prazo é um ano. É um conjunto de informações extenso que precisa ser avaliado e que requer um conhecimento multidisciplinar, envolvendo diferentes especialidades. Por isso, 60 dias é muito desafiador”, ponderou Mendes. (BL e MEC)

“A gente ainda não conseguiu a vacina que você pode diluir, que não precisa de cadeira de frios, que seja mais barata e que consiga um acordo. Enfim. Vamos conseguir, mas, para quem?”
Érika Aragão, pesquisadora da UFBA

Mortes passam de 169 mil

O Brasil registrou 194 novas mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na noite de ontem, elevando o total de óbitos pela doença no país a 169.183. De sábado para domingo foram registrados 18.615 novos casos da covid-19, aumentando o total de confirmações para 6.071.401. Desses registros, 5.432 505 são de doentes que já se recuperaram, segundo o ministério, e 469.713 ainda estão em acompanhamento.

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