Próxima pandemia pode começar no Brasil se relação com animais não mudar

A cadeia de contágio do coronavírus se iniciou a partir de um hospedeiro silvestre. Evitar interações assim é essencial para a prevenção

 

Responsável pela morte de mais de 500 mil pessoas ao redor do mundo, o novo coronavírus é reconhecido como uma zoonose: um vírus que se originou em um animal e evoluiu até ser capaz de infectar humanos. O vírus, que vive normalmente em morcegos, provavelmente demorou décadas para contaminar outra espécie (que ainda não se sabe qual foi, apesar de o pangolim ter sido um dos primeiros cogitados), e este outro animal então infectar o ser humano.

O momento no qual a primeira pessoa teve contato com o hospedeiro e contraiu o vírus que deu início à pandemia não está claro, mas, por enquanto, a principal hipótese é de que o encontro tenha acontecido em um wet market, um mercado de animais silvestres, na China.

Sem regras sanitárias rígidas, a cultura chinesa tem uma relação normal com esse tipo de situação: as pessoas não apenas consomem carnes exóticas para alimentação mas também partes dos animais são usadas como ingredientes na medicina tradicional. No centro de Wuhan, o mercado apresentava seres vivos e mortos, todos próximos, em barracas.

Pode parecer uma realidade muito distante, mas o Brasil, como um dos países com maior biodiversidade do planeta, corre grandes riscos de ser o local de surgimento da próxima zoonose capaz de provocar uma pandemia. Por aqui, as leis que protegem os animais silvestres vão sendo cada vez mais amenizadas, apesar dos perigos reais que a Covid-19 agora mostra.

“No Brasil, temos algumas formas de explorar a vida silvestre. Há a possibilidade de usar para o mercado pet (passarinho, papagaio, alguns répteis), de consumo (principalmente javalis, jacaré, paca e cotias) e manufatura (couro). Hoje, 556 espécies são exploradas comercialmente no país”, explica Maurício Forlani, gerente de vida silvestre da ONG Proteção Animal Mundial. Ele conta que, desde 2011, o Ibama vem passando a responsabilidade de gestão da fauna para os estados, e cada unidade federativa vai criando a própria “lista pet”, um rol de animais que podem ser comercializados e domesticados. Porém cada estado sofre uma pressão diferente, e alguns acabam liberando espécies selvagens para o convívio próximo com os humanos.

Há também a possibilidade de caça esportiva de espécies exóticas: no Brasil, a modalidade só é permitida para manejo do javali, mas é aceita como caça de subsistência de comunidades menores. “Em linhas gerais, se caça, legal ou ilegalmente. O cenário brasileiro é, justamente, o contrário do que a pandemia nos ensina. É possível achar na internet dicas, técnicas e resultados da captura de animais silvestres proibidos. O homem está se aproximando do animal e, com isso, aumentando o risco de doenças”, explica Maurício.

Ele lembra ainda que, apesar de o brasileiro achar os costumes chineses “bizarros”, por aqui, há comportamentos bem parecidos. A tradição de se colocar cobra em cachaça é um exemplo da relação próxima com animais silvestres. Por aqui, não se come rato, mas um dos animais mais caçados é a paca, que também é um roedor.

Os cientistas não sabem como o Brasil ainda não passou por uma grande zoonose. Como boa parte das ações era ilegal há pouco tempo, isso coíbe o consumo e o contato em grande escala. Mas o cenário está se flexibilizando.

MADRID, SPAIN – MARCH 25: Members of the Military Emergency Unit (UME) take vans of the deceased for cold storage at the Palacio de Hielo ice rink on March 25, 2020 in Madrid, Spain. Spain plans to continue its quarantine measures at least through April 11. The coronavirus (COVID-19) pandemic has spread to at least 182 countries, claiming more than 18,000 lives and infecting hundreds of thousands more. (Photo by Carlos Alvarez/Getty Images)

“Quando se faz um paralelo com a China, nada do que aconteceu em Wuhan é ilegal. Aqui, em dados de 2010 a 2015, apenas 1% da verba do Ibama era usada para fiscalização desse tipo de comércio. Temos uma biodiversidade muito desconhecida e não sabemos quase nada sobre os patógenos (vírus) que circulam nos animais exóticos. Seguimos invadindo áreas naturais, tornando a convivência com os animais mais próxima. Na minha opinião, estamos criando um coquetel molotov”, alerta Forlani. “O Brasil é um prato cheio para novas pandemias. É triste. Existe uma negligência histórica e o que estamos vendo é uma tendência de exploração ainda maior.”

Animais domesticados

Não são só os animais silvestres que podem transmitir doenças com potencial de se alastrar pelo mundo inteiro. Bons exemplos são os porcos, que desenvolveram a gripe suína, e o frango, na gripe aviária. Animais confinados, com más condições de vida e mal alimentados, possuem mais chances de desenvolver doenças.

De acordo com a virologista e pesquisadora da Embrapa Janice Zanella, entretanto, por ser um dos maiores exportadores de carne bovina, suína e de frango, o Brasil evoluiu bastante no manejo dos animais para evitar doenças. “O produtor entendeu que se o animal não tem bem-estar, não tem lucro. Ele vai ficar doente, vai morrer, existe um cuidado com isso”, explica. Com rebanhos menos lotados e com espaço para pastagem, é mais fácil garantir atendimento veterinário e fazer o possível para que o animal não fique doente e passe o patógeno para humanos.

Mesmo com uma produção segura vinda de animais domesticados, a pesquisadora também se preocupa com a questão dos exóticos e também se pergunta por que o Brasil ainda não foi berço de uma pandemia. “Precisamos repensar nossa atuação como país”, alerta.

Soluções para mudar

Segundo um time de 20 especialistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, a relação de humanos com animais precisa realmente ser revista para evitar que novas pandemias, como a da Covid-19, causem tantos óbitos no futuro. Foram elencadas 161 opções de mudanças e sete caminhos pelos quais uma nova zoonose pode surgir.

“Não podemos prevenir completamente futuras pandemias, mas há uma série de opções para diminuir substancialmente o risco”, diz Silviu Petrovan, um dos responsáveis pelo levantamento. “Não podemos assumir que a próxima pandemia vai aparecer do mesmo jeito que a Covid-19, precisamos agir em larga escala para reduzir as chances de que aconteça novamente”, afirma o professor William Sutherland, que também participou da elaboração do documento.

Entre as sugestões apontadas, estão o fim de atividades de caça e troca de animais silvestres, wet markets, como o de Wuhan, e o consumo desse tipo de carne – os pesquisadores admitem que é um caminho difícil e que deve ser pensado com cuidado, para coibir o tráfico ilegal e não dificultar a vida de pequenas comunidades que precisam desse tipo de alimento para sobreviver.

Melhorar a biossegurança de fazendas também é um ponto-chave, para evitar a possibilidade de transmissão de vírus de animais domesticados para humanos.

Os especialistas sugerem que sejam criadas leis para prevenir que diversas espécies de animais silvestres e domesticados sejam transportados juntos (o que pode causar o salto de vírus entre eles), melhorar os protocolos de segurança para cavernas onde há muitos morcegos, limitar a quantidade de animais em fazendas para ter certeza de que critérios de cuidado veterinário serão atendidos.

Outra opção é uma que já vem sendo discutida há anos por ativistas: parar de consumir derivados de animais. Com menos demanda, a proposta é que as fazendas fiquem mais vazias, melhorando a qualidade de vida e a atenção aos bichos.

“Animais silvestres não são o problema, eles não causam emergências sanitárias. As pessoas o fazem. Na raiz do problema, está o comportamento humano e mudá-lo é a solução”, opina Andrew Cunningham, coautor do estudo.

A pesquisadora Janice vai além, e lembra que os animais não são as únicas partes do quebra-cabeça que resulta em uma pandemia de grandes proporções, como a da Covid-19. “Precisamos pensar além do hospedeiro. Para ter doença, precisa do ambiente, do patógeno. Temos cada vez mais humanos no mundo, vivendo em grandes cidades, convivendo mais, dividindo o transporte público e o banco do estádio de futebol. Moramos cada vez mais perto das florestas. A população também está mais idosa e hoje é possível atravessar o Oceano Atlântico em 12h, levando qualquer vírus para outro país”, lembra.

Ela cita a capacidade de os vírus se modificarem e evoluírem. As bactérias também vão se tornando cada vez mais resistentes. “Das 29 proteínas do genoma do coronavírus, por exemplo, metade é para se reproduzir e metade serve para driblar o sistema imune. A principal razão dele existir é se replicar no hospedeiro”, alerta.

“Ninguém sabe os fatores corretos que resultam no surgimento de doenças, mas precisamos pensar nos componentes, os principais atores desta história. Já passamos por várias pandemias e cada uma nos trouxe uma lição. A da Covid-19 é mostrar que somos um só, uma saúde une o mundo inteiro”, conclui.

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