Maioria dos crimes de abusos sexuais contra criança ocorre dentro de casa

A segunda reportagem da série trata dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes, como os vividos pela jovem Ana. A maioria desses crimes ocorre dentro de casa e são cometidos por alguém responsável pelo cuidado e pela segurança da vítima

 

Quando entra na sala, Ana (nome fictício) chama a atenção. Bonita, alta, um tanto tímida. Fala, porém, com desenvoltura e transmite uma segurança surpreendente para quem foi impactada pela violência desde muito cedo. “Eu sofri uma violência do meu irmão quando eu tinha uns 6 anos, e isso ficou acontecendo até eu ter uns 11”, conta, ao Correio, a jovem de 18 anos.
Ana enfrentou seu tormento em silêncio, por temor de abalar a mãe. “Ela é doente. Eu sempre achei que mais um problema só iria prejudicá-la. Passei uns seis anos escondendo tudo. Isso acabou comigo por dentro.” Só muito tempo depois a mãe soube da violência — a reportagem não fornecerá mais informações para preservar a identidade da jovem.
O drama vivido por Ana é uma realidade na rotina de milhares de crianças e adolescentes no país. Os abusos sexuais que impactam vítimas de todas as idades e classes sociais são o tema da segunda reportagem da série Infância: um grito de socorro.
No Brasil, há um dia específico de mobilização contra esses crimes. A instituição do 18 de maio foi um passo importante, mas o enfrentamento da violência carece de participação efetiva e permanente da sociedade, prevenindo e denunciando os abusos, e do Estado, com mais políticas públicas e campanhas de conscientização.
“Temos avanços importantes. A partir de campanhas, de todo o trabalho de sensibilização, da mídia, das redes sociais, há uma possibilidade maior de denúncia, de as pessoas notificarem, falarem sobre isso”, afirma Karina Figueiredo, membro da coordenação do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. “Mas a gente ainda tem muitos desafios no que se refere ao papel das políticas públicas em darem resposta ao combate a essa violência. Não tem como não dizer que não houve avanço, porém, é aquela velha questão: criança e adolescente não são prioridade absoluta, embora esteja na lei.”
No Distrito Federal, de janeiro a abril deste ano, houve 79 casos notificados de violência sexual contra esse público, segundo o Disque 100— canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Nos 12 meses de 2018, a capital federal teve 291 registros .
Os números, porém, não refletem a totalidade dessa barbárie, porque os abusos ocorrem, principalmente, dentro da família, e são cometidos por pai, mãe, madrasta, padrasto, irmão, tio, primo, avós — além de amigos, vizinhos e conhecidos. Os integrantes do núcleo familiar não percebem o crime, se calam para preservar sua “harmonia” ou se veem chantageados pelo molestador, que ameaça agredir ou matar parentes em caso de denúncia.
Meninas e meninos também costumam aguentar tudo em silêncio porque, muitas vezes, não compreendem que estão sendo vítimas de abusos. “A literatura (médica) diz que leva de um ano a um ano e meio para a criança denunciar, por causa de todo esse contexto que perpassa a violência sexual. A maioria dos casos ocorre no ambiente intrafamiliar, o agressor é conhecido”, diz Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde. “A criança fica submetida àquela situação até compreender que é uma violência e conseguir contar para alguém.”
A vergonha e o sentimento de culpa são comuns entre as vítimas. Ana afirma que, se pudesse falar com todas elas, diria para entenderem que não têm responsabilidade pelo que ocorreu. “Que não foi uma roupa, não foi uma coisa que fizeram ou disseram”, ressalta. “É importante não se calar. Então, se tem um amigo de confiança, a mãe, o pai, fale, converse, procure o Conselho Tutelar”, ensina. Nem sempre, porém, a denúncia é a etapa inicial para o fim da violência. Geralmente, meninos e meninas são desacreditados ao revelarem os abusos. “Quando a criança é muito pequena, dizem: ‘Ela não sabe do que está falando, está fantasiando’. Se é adolescente: ‘Adolescente mente’”, exemplifica Ana Cristina Melo Santiago, delegada-chefe da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Na unidade, as vítimas são ouvidas numa escuta especializada, com um método desenvolvido para não revitimizá-las, e fornecem dados para o processo criminal.
A violência sexual tem consequências profundas na saúde física e mental e no desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. Muitos apresentam alterações cognitivas, atrasos na escola, têm raiva profunda, pesadelos frequentes. Os impactos prosseguem na vida adulta, como diz Karina Figueiredo. “Eu trabalho hoje com mulheres que são dependentes de álcool e outras drogas, e 90% delas sofreram violência sexual na infância”, relata. “Elas falam claramente que o uso da droga é uma forma de anestesiar essa dor.”

O suplício de Araceli

Denuncie

Todos os tipos de violência contra crianças e adolescentes podem ser denunciados nos conselhos tutelares, cujos endereços e telefones estão no site do Conselho.Também é possível fazer a denúncia em qualquer delegacia ou por meio do Disque 100 (o usuário disca para o número 100, seleciona a opção desejada e é encaminhado para um atendente), do aplicativo Proteja Brasil (o usuário vai à loja de aplicativos do seu celular e faz o download, gratuitamente, disponível para iOs e Android) e da Ouvidoria on-line (preenche um formulário disponível em www.humanizaredes.gov.br/ouvidoria-online/). O anonimato é garantido.

Educação sexual como prevenção

A educação é uma das formas apontadas por especialistas para combater os abusos contra meninos e meninas. O Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes defende que as escolas ensinem educação sexual como forma de prevenção. “Nós buscamos desmistificar esse olhar de que educação sexual na escola é ideologia de gênero, é ensinar a criança a fazer sexo. Não tem nada a ver”, afirma Karina Figueiredo, membro da coordenação do comitê. “Educação sexual é para proteção da criança. E tem de ser séria, respeitando as etapas de desenvolvimento.”
Um dos eixos de trabalho do comitê é envolver meninos e meninas diretamente na prevenção. Com anos de experiência, Karina Figueiredo diz ser comum encontrar, por exemplo, uma adolescente que começou a ser abusada na infância, mas que não sabia ter sido vítima de violência. “Só foi entender quando estava mais velha, porque não ensinaram para ela que ninguém podia tocar em suas partes íntimas, não disseram como diferenciar um toque de afeto de um toque erotizado, que se acontecesse alguma coisa ela deveria contar para alguém de confiança. A autoproteção é fundamental”, ressalta.
Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav) da Secretaria de Saúde, também defende a educação sexual. Para ela, lições sobre o assunto não expõem a criança a ter uma relação sexual precoce. “Na verdade, evita. A criança informada, quando tocada com desconforto, numa parte íntima, vai conseguir contar mais rápido e nós conseguimos diminuir a duração da violência”, explica. “Se não souber, ela vai ficar vendida, porque será alguém de maior poder, com maior maturação neurobiológica, contra alguém que não tem condição neurobiológica de responder.” Ela cita, por exemplo, o pai molestador que diz para a criança que a toca daquela forma porque a ama. “É macabro. E aí a gente priva a criança de compreender isso e de pedir ajuda.”
A prevenção tem de ser feita com as famílias também, ressalta Fernanda Falcomer. Com mais informações sobre a forma de agir de abusadores, adultos têm condições de proteger as crianças. “O pedófilo rompe barreiras, se põe ao lado da mãe, do pai, ganha a confiança. Veja o João de Deus. O pai de uma menina estava na mesma sala enquanto ela era abusada.”
Falcomer relata o caso de uma mãe que só compreendeu o que o pai fez com ela ao levar o filho, abusado por uma outra pessoa, para atendimento. “Quando a gente começou o trabalho com o menino, ela entrou num pranto que o garoto não entendia e a gente também não”, afirma. No atendimento em separado, ela  relatou que o pai a chamava para a roça e lhe dava doce em troca do abuso. Além de não entender que era vítima de violência, ela se sentia culpada porque não dividia os doces com os irmãos.
Pais ou responsáveis também têm de ser orientados sobre a necessidade de conversar com crianças e adolescentes a respeito do tema e como abordá-lo. “A gente sabe que isso é difícil, porque falar sobre o assunto é um tabu grande. E, às vezes, a família não identifica o abuso. Muitas mães que passaram por uma situação assim acham que faz parte da vida da mulher”, frisa Karina Figueiredo.

De olhos fechados

A advogada Camila Ribeiro disse que foi abusada pelo médium João de Deus, em 2008, durante atendimento espiritual em Abadiânia. Ela contou que tinha 16 anos à época e que o pai estava na sala, mas, a pedido do religioso, ficou de costas, com os olhos fechados e rezando. Camila disse que chorou muito durante o abuso, mas o pai acreditava que era porque ela estava sendo curada. “Eu nunca podia imaginar que ela estava na mão de um bandido”, afirmou o pai, em entrevista ao Fantástico. João de Deus é acusado de uma série de abusos sexuais e está preso desde dezembro do ano passado.
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